domingo, julho 26, 2020

Novos hábitos de consumo reforçam o conservadorismo no rock

Marcelo Moreira

Dois fatos aparentemente sem conexão são reveladores, em 2020, dos arraigados e sedimentados novos hábitos de consumo de música e informação - na verdade, falta de consumo de informação.

A revista inglesa Q, um marco do jornalismo musical mundial a partir dos anos 90, anunciou o fim de sua edição impressa e analisa a continuidade na marca apenas na internet. Outro gigante do ramo, a Kerrang!, pode seguir o mesmo caminho.

De outro lado, temos Beatles e Queen bombando nas "paradas" musicais que ainda restam, sejam no registro de vendas, ou no registro de execução.

Os Beatles foram, em 2020, os artistas de rock com mais vendas de discos - 1,09 milhões de unidades, de acordo com o relatório semestral da Nielsen - transcrito pelo I Heart Radio e pela Rolling Stone Brasil.

A banda britânica foi campeã majoritária e quase sem concorrentes; a segunda colocada, Queen, vendeu 768 mil cópias.

Em seguida, Imagine Dragons (593 mil), FleetwoodMac (565 mil) e Metallica (551 mil). Elton John,Creedence Clearwater Revival e Journey também figuraram entre os discos mais vendidos.

Já "Greatest Hits", coletânea do Queen, voltou às listas de mais vendidos,  atingindo a marca de 900 semanas nas paradas de discos do Reino Unido desde seu lançamento, em 1981.



De forma resumida, podemos entender o seguinte: o público que gosta de música não tem interesse - e faz tempo - em pagar por informação musical de qualidade, e não só na área de cultura e artes; esse mesmo público, em grande parte do mundo, está cada vez mais conservador, meio preguiçoso e nem um pouco interessado em conhecer novos artistas - e muito menos pagar pelo trabalho deles.

Não é de hoje que jornalistas da área musical costumam brincar, de forma melancólica, que notícias e música ficaram de graça nos anos 2000 e desde então ninguém mais se digna a pagar por notícias, CDs, músicas digitais ou ingressos para ver artistas pouco ou nada conhecidos.

Os novos hábitos de consumo torpedearam em cheio uma área antes lucrativa e que movimentava bilhões de dólares. Com a quebra de gravadoras e o sumiço de dinheiro de investimentos, pouca coisa restou aos músicos que precisam batalhar diariamente por sustento.

Consultores e "especialistas" adoram vaticinar, como se fossem oráculos, que aristas precisam ser reinventar, gerenciar de forma responsável e eficaz suas carreiras e se tornar "empreendedores". Discurso fácil, mas bem distante da realidade. É uma tentativa de justificar a "uberização" do músico e da arte.

O mantra neoliberal da ultraconcorrência e da total redução de custos para "maximizar" produtos e serviços é um dois maiores engodos da atualidade. É uma tentativa de convencer os artistas de que, tal como entregadores de comida por aplicativos de alimentação, músicos e artistas têm um caminho livre pela frente para "inovar" e "criar".

Digamos, então, que o artista desconhecido, mas com potencial, precisa arrumar dinheiro para pagar estúdio, ensaiar, pagar banda, gravar CD, gastar com divulgação, com prensagem pequena de CDs, com uma mínima assessoria de imprensa para, quem sabe, ter sua música executada em uma web rádio e atrair a atenção de de específico, que talvez o ouça no streaming e compre sua música - algo raríssimo hoje em dia para a grande maioria. 

Para encerrar, terá de ceder parte de seus ganhos parcos, ou a maior parte deles, para um eventual empresário que vai tentar arrumar alguns shows aqui e ali, que talvez paguem, no começo, R$ 200 ou R$ 300 por noite. E se tiver banda acompanhando?

Não é um cenário desconhecido, pelo contrário, é a realidade para a maioria dos músicos desde, no mínimo, 2005. E os exemplos autossustentabilidade de sempre no mundo independente - Autoramas, Boogarins, Far From Alaska, O Terno - são exceções em um mercado depredado e dilapidado.

'Hey Jude' é uma das coletâneas favoritas dos Beatles; lançada em janeiro de 1970, praticamente antecipou o fim dos Beatles, que seria oficializado três meses depois, em abril daquele ano
A falta de uma imprensa especializada mais robusta para divulgar as novidades ajuda a enterrar as esperanças de uma entrevista bacana ou uma resenha esperta de um trabalho que realmente merece. 

Informação de qualidade não é barata. Tem um custo necessário para que jornalistas e comentaristas tenham tempo de ouvir, pesquisar, buscar informações e interpretar de forma equilibrada e sensata os trabalhos novos. 

Muitos artistas importantes são o que são graças à "descoberta" feita por jornalistas e radialistas que tiveram tempo e a formação necessária para identificar coisas boas e impulsioná-las.

Quando a publicidade deixa de acreditar na imprensa de qualquer segmento todos perdem, assim como quando um veículo de comunicação desaparece. 

A publicidade e a propaganda ainda não se convenceu de que a internet e o jornalismo na internet são bons veículos para divulgar produtos de qualquer natureza. Preferem despejar seus recursos e divulgar seus clientes, e ainda de forma pouco explicável, nos esquemas randômicos de megaempresas como Google e Facebook, o que ajuda a explicar a diminuição progressiva e consistente do dinheiro para jornais, revistas e sites.

"A internet facilitou muita coisa, mas também corroeu a credibilidade e a consistência de muita coisa. O consumidor de notícias se acostumou a não pagar por elas. A música também ficou de graça ou barata demais, o que ajudou a destruir seu valor agregado. Junte-se a isso a pouca ou nenhuma fidelidade do 'consumidor' de internet e então eu tenho de arrumar argumentos para justificar ao cliente anunciar em veículos já mortos e enterrados e em sites cuja propaganda ninguém dá a mínima", diz um renomado publicitário paulistano especializado no mercado cultural. Ele pediu para ter sua identidade preservada.

Ele aponta outra questão que acaba por influenciar a situação trágica no resgate de algum tipo de mercado musical: pulverização da informação e da exposição de novos trabalho, fator que dificulta a disseminação e ampliação de público.

"A internet e a tecnologia facilitaram o acesso e a criação, mas ao mesmo tempo dificultaram o caminho para que a informação de qualidade chegue onde tem de chegar. Mais bandas estão divulgando seus trabalhos, mas, como era esperado, a maioria não consegue a qualidade técnica necessária. Os bons trabalhos se perdem em um mar de música de todo o tipo e de variadas qualidades. O mesmo vale para o jornalismo profissional musical. A maioria dos sites de rock e metal no brasil é desoladora, malfeita e sem credibilidade. De uma hora para outra, todo mundo achou que pode ser blogueiro e 'diretor' de site de música com layout decente, mas com informações péssimas. O cliente quer coisa específica e direta e quer passar longe de blogs e sites parceiros de portais. Mercado achatado e pulverizado, com consumidor infiel e pouco disposto a pagar por produtos culturais se tornaram fatais para a música, para a cultura e parte do jornalismo", diz o publicitário, que acentua seu pessimismo em relação às perspectivas desse mercado.

É claro que boa gente e esperta e competente tenta há anos encontrar caminhos para revitalizar o mercado musical e também o da cultura, mas esteve sempre claro, desde pelo menos 2010, que parceiros patrocinadores eram necessário para ajudar a dar o pontapé inicial em muitos projetos.

Mas eis que o novo coronavírus parece não ter concordado e, com especial predileção por entretenimento, cultura e educação, dizimou os muitos projetos em andamento e incinerou os que estavam nas gavetas ou no papel, em finalização.

O novo mundo pós-pandemia, quando vier, terá pouca predileção, no início, pela área do entretenimento. Não serão muitos os locais bacanas com música ao vivo ou casa de show que reabrirão. Muitos, aliás, nem reabrirão. 

Não será possível sobreviver só de lives - se fosse, já seria uma solução descoberta havia muitos anos. A remuneração pelo ato criativo, seja uma música ou uma reportagem, terá de obedecer a uma série de novos critérios que nós nem sequer imaginamos neste momento

O pouco interesse do público de 2020 pelo novo - principalmente em relação aos mais jovens - está relegando o rock e alguns outros gêneros musicais a nichos específicos, como o blues, o jazz e a música erudita. 

O sertanejo, o rap e o funk ainda se mantém relevantes e rentáveis por conta de indústrias consolidadas nos últimos 15 anos e que têm relação extremamente próxima com o mercado publicitário e o marketing em geral. 

Isso ocorre porque os artistas, independentemente da qualidade das músicas, estão conseguindo manter um diálogo aberto e com seu público, algo que parece não acontecer há muito tempo com o rock. 

Será que a aura de "rock alternativo/independente" de uma banda como Autoramas, de repente, colou de tal forma que o rótulo afasta um público jovem mais amplo?

Provocando um pouco: o roqueiro, seja jovem ou maduro, ficou conservador porque não se sente representado pelos novos artistas? 

Ou seria o contrário: não encontra voz nos novos artistas e no rock mais sério e artístico dos artistas novos e, por certa preguiça e nenhuma vontade de pagar pelo que quer que seja, decidiu mergulhar no comodismo e na "segurança" do classic rock, tão fácil e acessível por preços módicos no ambiente digital? 

'Goat's Head Soup', dos Rolling Stones, foi lançado em 1973 e ganhará em setembro uma nova edição remasterizada e com faixas bônus inéditas
Seria a nova re-re-re-reedição da discografia dos Rolling Stones, em nova re-re-remasterização, o principal sintoma desse quadro melancólico?

Ainda faltam, ao grande público, dados e pesquisas sobre os novos hábitos de consumo de música e cultura, bem como o impacto da publicidade na internet, em especial nos veículos de comunicação ainda, de alguma forma, vinculados com um passado recente e não tão recente. 

A questão é que, em um mundo tão tecnológico e tão obcecado pelo novo e pelo inovador, o público roqueiro, jovem ou não, percorre caminhos opostos e despreza a novidade e tem ojeriza a pagar para consumir música e informação. 

Não há solução à vista para esse labirinto, mas o que podemos vislumbrar é que quase ninguém tem a ganhar com esse mundo novo onde a música definha, assim como parte da criatividade, e a informação de qualidade sucumbe à preguiça e à indolência do consumidor, iludido com uma suposta oferta de notícias com credibilidade. Talvez esse seja o maior desafio atual da área de comunicação.

O programa Combate Rock de web rádio, na Dublab, tratou desse tema em sua última ediçção, a de número 52. Clique no player abaixo e ouça o debate:

2 comentários:

Renato Martino disse...

Excelente artigo! Parabéns!

Marcelo Moreira disse...

Muito obrigado pela deferência.

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