quinta-feira, agosto 07, 2008

Acredite se quiser...


Retirado do blog de Juca Kfouri


Processo No 2008.211.010323- 6

TJ/RJ - 06/08/2008 15:06:31 - Primeira instância - Distribuído em 11/07/2008


Regional da Pavuna

Cartório do 25º Juizado Especial Cível


AUTOS N.º 2008.211.010323- 6

RECLAMANTE: CARLOS ALMIR DA SILVA BAPTISTA

RECLAMADO: JORNAL MEIA HORA DE NOTÍCIAS


SENTENÇA


Dispensado o relatório, nos termos do artigo 38 da Lei 9.099/95.

Primeiro registro que é absolutamente incrível que o Estado seja colocado a trabalhar e gastar dinheiro com uma demanda como a presente, mas... ossos do ofício!

Ressalto, desde já, estarem presentes todos os pressupostos de regular desenvolvimento do processo e as condições para o legítimo exercício da ação. O autor é capaz e está bem representado, o juízo é competente e a demanda está regularmente formada. As partes são legítimas, há interesse de agir, já que a medida é útil na medida em que trará benefício ao autor, necessária, já que sem a intervenção judicial não poderia ser alcançado o que se pede, e o pedido, por sua vez, é juridicamente possível, tratando-se de compensação por dano moral e pedido de retratação. O que não existe nem de longe é direito a proteger a absurda pretensão do reclamante. A questão é de direito e de mérito e assim será resolvida evitando-se maiores delongas com esse desperdício de tempo e dinheiro do Estado.

O reclamante, cujo time foi derrotado na final da Libertadores, sentiu-se ofendido com matérias publicadas pelo jornal reclamado, que, segundo ele, ridicularizavam os torcedores, incitavam a violência e traziam propaganda enganosa.

As matérias, no entanto, são apenas publicações das diversas gozações perpetradas pelas demais torcidas do Estado em razão da derrota do time do reclamante. Tais gozações são normais, esperadas e certas de vir sempre que um time perde qualquer partida, quanto mais um título importante que o técnico, jogadores e torcedores afirmavam certo e não veio. Mais. As gozações são inerentes à existência do futebol, de modo que sem elas este não existiria porque muito de sua graça estaria perdida se um torcedor não pudesse debochar livremente dos outros.

É certo que o reclamante "zoou" os torcedores de outros times da cidade em razão de derrotas vergonhosas na mesma competição em que seu time foi derrotado, em razão de um dirigente fanfarrão ou em razão de uma choradeira com renúncia, e nem por isso pode o mesmo ser processado. Ressalto que se o reclamante viu tudo isso e ficou quietinho, sem mangar de ninguém e sem se acabar de rir, – não ficou, mas utilizo-me dessa (im)possibilidade para aumentar a argumentação – deve procurar outros esportes para torcer, porque futebol sem deboche não dá!

Ainda que a matéria fosse elaborada pelo jornal reclamado, é possível à linha editorial ter um time para o qual torcer e, em conseqüência lógica de tal fato, praticar "zoações", o que, em se tratando de futebol, é algo necessário e salutar à existência do esporte. Registro que há jornais que não só têm a linha editorial apoiando um ou outro clube, como há os que são criados pelos torcedores para, dentre outras coisas, escarnecer os rivais, o que é perfeitamente viável.

Evidente, por todo o ângulo em que se olhe, que não há a menor condição de existir a mínima lesão que seja a qualquer bem da personalidade do reclamante. "Zoação" é algo inerente a qualquer um que escolha torcer por um time de futebol e vem junto com a escolha deste. O aborrecimento decorrente do deboche alheio é inerente à escolha de uma equipe para torcer e, portanto, não gera dano moral, ainda que uma pessoa, por excesso de sensibilidade, se sinta ofendida e ridicularizada.

Continua o reclamante na sua petição afirmando que o reclamado incita a violência com sua conduta. É engraçado, porque o próprio reclamante afirma que teve que dar explicações à diretoria de seu local de trabalho em razão de desavenças com seus colegas. A inicial não é clara neste ponto, mas se houve briga em razão do reclamante não aceitar as gozações fica ainda mais evidente que o mesmo deve escolher outro esporte para emprestar sua torcida, porque, como já dito, futebol sem deboche, não dá! E o que é pior! O reclamante, se brigou, discutiu ou se desentendeu foi porque quis, porque é de sua vontade e de sua índole e não porque houve uma publicação em jornal. Em momento algum o jornal sugere que haja briga, o que só ocorre em razão de eventual intolerância de quem briga, discute ou se desentende.

Por fim, o argumento mais surreal! A propaganda enganosa! Chega a ser inacreditável, mas o reclamante afirma que houve propaganda enganosa porque na capa do jornal há um chamado dizendo existir um pôster do seu time rumo ao mundial, mas no interior a página está com "uma foto com os jogadores (...) indo em direção a uma rede de supermercados". Ora, e a que outro mundial o time do reclamante poderia ir se perdeu o título da Libertadores? Qualquer um que leia a reportagem, inclusive toda a torcida de tal time e em especial o reclamante, sabe, por óbvio, que jamais poderia existir foto da equipe indo à disputa do título mundial no Japão, porque isso nunca ocorreu.

A pretensão é tão absurda que para afastá-la a sentença precisaria apenas de uma frase: "Meu Deus, a que ponto nós chegamos??!! !", ou "Eu não acredito!!!" ou uma simples grunhido: "hum, hum", seguido do dispositivo de improcedência.

É difícil encontrar nos livros de direito um conceito preciso do que seria uma lide temerária, mas esta, caso chegue ao conhecimento de algum doutrinador, será utilizada como exemplo clássico para ajudar na conceituação.

O reclamante é litigante de má-fé por formular pretensão destituída de qualquer fundamento, utilizar-se do processo para conseguir objetivo ilegal, qual seja, ser compensado por dano inexistente, além de proceder de modo temerário ao ajuizar ação sabendo que não tem razão e cuja vitória jamais, em tempo algum, poderá alcançar.

Isto posto, JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO.

Condeno o reclamante como litigante de má-fé ao pagamento das custas, nos termos do caput do artigo 55 da Lei 9.099/95.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

Após as formalidades legais, dê-se baixa e arquivem-se.

Rio de Janeiro-RJ, 31 de julho de 2008.

José de Arimatéia Beserra Macedo

Juiz de Direito
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 7 - continuação da saga de Rubens Marujo

Eduardo Ribeiro(*)
da coluna Jornalistas e Cia, do site Comunique-se

Monopólio da Igreja – Depois disso tudo, cheguei à conclusão de que deve existir "uma indústria da miséria". Em São Paulo, o monopólio dos moradores de rua está nas mãos da Igreja. Ela usa a verba da Prefeitura, mas gasta muito pouco na melhoria dos serviços do albergue.

Na época em que se chamava Cireneu (nome de um empresário ligado ao grupo Copagaz) a coisa era ruim, mas só aceitavam pessoas com mais de 40 anos. Depois que a Igreja assumiu o albergue, abriu as portas para todo mundo. Então, jovens, líderes de facções criminosas, assaltantes e até traficantes passaram a almoçar e morar lá. Eram comuns os princípios de tumulto.

"Muquiranas" – Para se conseguir almoçar era preciso esperar, em média, 3 horas, debaixo de chuva ou de sol. Os padres se recusavam a abrir os portões para que pudéssemos entrar e nos abrigar. Um papel colado na parede interna do dormitório indicava que a dedetização estava vencida havia 3 meses. Os dormitórios ficavam infestados de baratas e de outros insetos, principalmente de "muquiranas", uma espécie de piolho que dá no corpo de quem não toma banho, produzindo uma coceira insuportável. É muito fácil ficar infestado. São os moradores de rua que os trazem.

Com auto-estima muito baixa, mas com alguma dignidade, suportávamos todo tipo de humilhação que nos era imposta, com medo de sofrer represálias: ser cortado e ir para rua. Era fila para entrar, fila para pegar alguma roupa no bagageiro, fila para tomar banho (quando os chuveiros funcionavam) e fila para jantar. Não adiantava muito tomar banho, porque éramos obrigados a vestir a mesma roupa, que cheirava mal.

Vícios – Pude constatar que a maioria dos albergados já está, de alguma forma, mentalmente comprometida com os vícios adquiridos e não existe uma política específica para tratar dessa questão social. Não há tratamento diferenciado para cada tipo de problema, curso técnico, suporte jurídico, assistência médica. Enfim, não há nada. Entra-se no final da tarde, só toma banho quem quer, dorme-se e, às 5h da manhã, todo mundo acorda.

No café da manhã é servido um pão (de hot-dog) com manteiga e café com leite de soja (mais dor de barriga em todo mundo). Depois, dez horas passadas na rua. Essa é a rotina. Do jeito que funcionam, esses albergues não contribuem para nada. Dali, a maioria sai e passa o dia bebendo e se drogando até a hora de voltar. Poucos trabalham ou fazem bicos. Estão todos abaixo da linha da pobreza. Dificilmente conseguem se reintegrar à sociedade.

Chá com política – Quem mora em albergue ou pelas ruas da cidade conhece muito bem o que é uma "boca de rango". É aquele lugar que oferece comida de graça aos pobres. Em São Paulo existem várias delas e uma das mais conhecidas, e bastante freqüentada, é a do "chá do padre". De segunda a sexta-feira, as 14h, a igreja de São Francisco, com entrada pela rua Riachuelo, oferece chá com dois pãezinhos com manteiga. O salão fica lotado e é nessa hora que os religiosos aproveitam para fazer suas pregações políticas, incitando os moradores de rua e albergados a se organizarem em movimentos políticos para reivindicar seus direitos junto ao governo. Até um terceiro mandato do Lula já foi questionado lá.

Quando não é no chá, essa doutrinação política é feita nos albergues, por meio das assistentes sociais. Mas os albergados são avessos a esses movimentos. As assistentes sociais também convocaram todo mundo para protestar no dia 1º de Maio, a pedido da Igreja. Disseram que era importante a presença dos albergados nessas manifestações. A Igreja mandou confeccionar vários cartazes e distribuíram farto material para que fossem feitas faixas e cartazes. Todos deveriam estar reunidos na praça da Sé. Mas ninguém deu a menor importância a isso.

A Prefeitura, por sua vez, faz propaganda enganosa, espalhando pelas principais praças da cidade peruas Kombi azuladas, com os dizeres "São Paulo Protege". Existem cerca de 13 mil moradores de rua em São Paulo, mas só a metade deles mora em albergue. Essas peruas só recolhem as pessoas da rua no final da tarde. E nem sempre existem vagas nos albergues. Cheguei a ver gente entrando às 2h da manhã para sair logo depois, às 5 horas."
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 6

Eduardo Ribeiro(*)
da coluna Jornalistas e Cia, do site Comunique-se

Sem camas – Um dia, com princípio de pneumonia, pedi para ficar lá dentro, pois chovia e fazia frio. Me sentia muito mal. Solicitei a um dos monitores que me deixasse ficar e ouvi:

"Não enche o saco, meu. Você não sabe que os padres não querem ninguém aqui dentro? Vá embora".

No dia seguinte, muito mal, me escondi na biblioteca e não saí. Era começo de maio, fazia um frio insuportável. Foi então que presenciei uma cena lamentável: o coordenador dos franciscanos dentro do albergue mandou retirar centenas de camas (são beliches) do dormitório para colocá-las nos porões daquele fétido lugar. Ele dizia aos outros monitores: "Quanto menos camas, melhor. Agora vem o frio, a Prefeitura vai querer mandar mais gente para cá e, desse jeito, podemos dizer que não há lugar". Depois, espaçou as camas que restaram para dar a impressão de que não havia mais lugar.

Indústria da miséria – Do jeito que funcionam, os albergues não contribuem para nada. A maioria sai e passa o dia bebendo e se drogando até a hora de voltar. Dificilmente conseguem se reintegrar.

No albergue São Francisco, que funcionava sob o viaduto Jaceguai, muitos dos idosos que lá dormiam não conseguiam mais fazer suas necessidades fisiológicas no banheiro. E sujavam na roupa, na cama, no chão. Não havia fralda geriátrica para eles.

Muitas vezes vi albergados mais novos ajudando os mais velhos a tomar banho. Vi vários deles caídos no chão, pedindo ajuda. O pior de tudo é que o albergue São Francisco foi desativado, mas na baixada do Glicério (seu novo endereço) a situação continua a mesma, segundo relatos dos albergados que foram removidos para lá. Outros foram encaminhados para um hotel social (a Prefeitura o chama de Centro de Recolhimento), na rua Francisca Michelina, na região central da cidade. A comida é razoável, mas costuma provocar indisposições estomacais.
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 5

Eduardo Ribeiro(*)
da coluna Jornalistas e Cia, do site Comunique-se



"Sentiam prazer em nos humilhar" (Segundo capítulo da série)

Nesta segunda reportagem, Marujo conta sua dura experiência de três meses num albergue da Prefeitura, onde a Igreja mostrou sua face mais intolerante. Durante o dia, nas ruas e praças. À noite, refúgio nos albergues municipais. Segundo ele, moradores de rua e desempregados são humilhados e usados como massa de manobra por religiosos. Segue o texto.

“Morei ali no albergue São Francisco, que ficava na esquina da rua Santo Amaro, com o viaduto Jacareí, bem em frente à Câmara Municipal de São Paulo. Ele foi desativado há 15 dias, da noite para o dia, por força de um abaixo-assinado dos moradores, pois o local se transformou em um ponto de albergados e marginais de todo o tipo, e retornou para a baixada do Glicério que estava sendo fechado. Antes o São Francisco chama-se Cireneu e era administrado por uma Ong de quinta categoria, com verba liberada pela Prefeitura, por meio da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social.

Pois bem. Em abril, os padres franciscanos assumiram o comando do albergue e o que era ruim ficou pior. Acho muito estranho que o padre Júlio Lancelotti e outros religiosos liderem uma passeata com moradores de rua, usando albergados como massa de manobra para conseguir, talvez, mais recursos da Prefeitura.

Maus tratos – Ali , no albergue São Francisco, os padres, que zelam tanto pela fraternidade, tratavam os albergados de forma desumana. Éramos mais de 400 pessoas amontoadas num imenso porão-dormitório sujo, que alagava quando chovia. Era um depósito de seres humanos, com um cheiro insuportável. Senhores com mais de 80 anos misturavam-se a jovens alcoólatras, drogados, crianças, mulheres, deficientes físicos e mentais, tuberculosos, portadores do vírus da aids, ex-presidiários e outros ainda cumprindo pena condicional, sem nenhum tipo de assistência.

Aquilo se assemelhava mais a um campo de concentração nazista. Durante cinco anos, o albergue funcionou ali, debaixo do viaduto, sob um estridente barulho, o "dum-dum" dos veículos que passam pelas emendas sobre o viaduto. Esse incômodo barulho martelava nossos ouvidos a noite toda. Nunca se tomou uma providência.

Com raríssimas exceções, os monitores, contratados pela igreja sem a mínima qualificação profissional, sentiam prazer em nos humilhar, deixando-nos na fila, debaixo de chuva e frio, à espera da hora de entrar. As regras são draconianas. Entra-se após às 17h30 e acorda-se às 5h. Até as 7h, todos têm que ir para a rua, inclusive aos domingos e feriados. As assistentes sociais explicavam que eram ordens da Prefeitura e não podiam fazer nada. Assim, todos, até mesmo as senhoras e outras pessoas com idade avançada tinham de sair, fizesse sol ou chuva.
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 4

Eduardo Ribeiro(*)
da coluna Jornalistas e Cia, publicada no site Comunique-se


Ano todo – Ele funciona assim: um outro agenciador alicia, de uma só vez, albergados ou desempregados que têm RG limpo. Nesse caso, ele precisa formar um grupo de dez a vinte pessoas. O aliciador leva os RGs, tira cópias e os devolve aos proprietários mediante o pagamento de R$ 10. Só que esses RGs serão usados o ano inteiro para a prática dessas operações de câmbio ilegais.

Bem, eu fui para o Hotel Renaissance. O esquema, porém, conta com casas de câmbio alternativas, em shoppings como o Anália Franco, o Center Paulista, o Interlagos e o Shopping Light. Além desses locais, as operações de lavagem de dinheiro também são feitas em algumas casas de câmbio localizadas no Centro da cidade, como por exemplo nas avenidas São Luís e Paulista.

Outros Golpes – Mas não é todo dia que acontecem as operações de lavagem de dinheiro. Quando não tem negócio para fazer, o aliciador, já conhecido dos freqüentadores, diz que "a barra tá suja" e que a polícia está dando em cima. Fiquei sabendo que, às vezes, para confundir os policiais, o esquema é feito dentro da estação Sé do metrô, bem em frente às catracas. Na região da rua 25 de Março existem vários outros locais de lavagem de dinheiro. Entretanto, outros golpes são aplicados ou tramados nas adjacências. Um deles, muito conhecido dos malandros, é o do aluguel da conta bancária.

Ouvi comentários e perguntei do que se tratava:

"O senhor é albergado"?

"Sim", respondi.

"Tem conta bancária"?

"Não".

"Então, tá fora".

É claro que eu não iria participar desses golpes sujos. Mas como repórter-albergado sentia curiosidade de saber como agiam. Diante de minha insistência em saber o que era, o rapaz me contou.

"O negócio é o seguinte: a gente rouba dinheiro de uma conta bancária, ou das pessoas, e não têm onde colocá-lo. Então, 'alugamos' uma conta-corrente. Por isso perguntei se o senhor tinha uma conta. Colocamos a grana lá. Depois, sacamos o dinheiro e o senhor ficaria com 20% do valor depositado. Esse é o esquema".

Falsificação – Aí fui percebendo que as escadarias do Teatro Municipal se transformaram num grande ponto de golpes e outras contravenções, apesar da constante e ostensiva presença da polícia. Descobri também que há quem "esquente" Carteiras de Trabalho. Isso significa que quem tem carteira, mas nunca trabalhou, ganha uma série de registros falsos, como se já tivesse trabalhado há muito tempo. Outros querem levantar dinheiro para comprar um computador, a fim de falsificar dólares e outros documentos. Nesse tipo de fraude, pelas conversas que ouvi, a concorrência é grande: um se diz melhor falsificador do que o outro. E há vários outros tipos de golpes tramados e executados ali mesmo, nas escadarias do Teatro Municipal.
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 3

Eduardo Ribeiro(*)
da coluna Jornalistas e Cia, publicada no site Comunique-se

Chá quente – No hotel, eu e o outro colega estávamos com a barba por fazer, mal vestidos e mal cheirosos. Entramos assim mesmo, sem que ninguém nos perguntasse quem éramos. A moça foi conversar com o funcionário do câmbio. Pediu que entrássemos e esperamos para ser atendidos, sentados em confortáveis poltronas. Numa delas havia uma mesinha com um bule de chá quente, que algum hóspede deixara ali. Meu amigo não hesitou em tomá-lo. Fomos chamados. Na minha vez, o funcionário da casa de câmbio solicitou o CPF e o RG. Tirou uma cópia e, antes de completar a operação, fez uma ligação telefônica.

"Alô, agora não posso mais fazer a R$ 1,77, só a R$ 1,78. Pode ser? Então vou fechar o negócio", afirmou.

Em seguida, imprimiu um papel numa máquina, tirou cópia dos documentos e me pediu endereço com CEP. Inventei um na hora, porque não fui avisado de que me faria tal pedido. Mas ele aceitou minha resposta. Negócio fechado. Devo ter comprado US$ 5 mil para alguém lavar o dinheiro. O funcionário fez a mesma coisa com o outro rapaz e fomos embora. Na porta de saída do hotel, a moça que nos acompanhava nos deu os R$ 15 mais o dinheiro da condução e fomos embora.

É bom que se esclareça que esse tipo de operação é permitida. O Banco Central autoriza que cada pessoa possa comprar, vender ou remeter até US$ 5 mil por mês. Mas no caso em questão, os doleiros e seus agentes que agem no Centro da cidade aliciam dezenas de albergados para a lavagem de dinheiro sujo. Não se sabe se ele vem de contrabando, tráfico de drogas, de desvios de recursos ou do crime organizado. Muitos albergados já fizeram essa operação mais de uma dúzia de vezes. O esquema é antigo e tão bem montado que existe até uma alternativa para quem não tem CPF.
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 2

Eduardo Ribeiro(*)
da coluna Jornalistas e Cia, publicada no site Comunique-se

Segue o texto de Marujo (1º capítulo da série)

“O esquema é sofisticado e participei, pelo menos uma vez, de uma dessas operações. Negócio fechado. Eu devo ter comprado US$ 5 mil para alguém lavar o dinheiro.

Todos os dias, nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo e arredores, bem no Centro da cidade, funciona um esquema muito bem planejado de lavagem de dinheiro sujo, patrocinado por grandes casas de câmbio.

Essas operações são feitas quase o dia todo, mas os horários de pico ocorrem às 11h30 e às 13h30, quando homens agenciados por doleiros aliciam pessoas, na sua maioria albergados, que ficam ali sentados. Esses aliciadores ficam à espera de uma oportunidade para comprar, vender ou fazer remessas de dólares para o Exterior, pagando a cada albergado a desprezível quantia de R$ 15. Como esses albergados não têm dinheiro nem para um cafezinho, se sujeitam a esse tipo de prática, atuando como laranjas.

O esquema é sofisticado. Eu mesmo participei, pelo menos uma vez, de uma dessas operações. Não tinha almoçado, estava com fome, então, me deram a dica. Ainda permanecia bem vivo o meu faro de jornalista.

A operação – Eram quase 14h de uma ensolarada segunda-feira. Fui para a escadaria e, minutos depois, apareceu um homem me perguntando se meu CPF era limpo. Limpo, no caso, significa não ter pendências na Receita Federal. É possível ter o nome sujo na praça, mas um CPF em dia. Além disso, ele perguntou se eu tinha RG e se estava tudo correto. Respondi que sim.

"Então, tudo ok", afirmou.

Fui aprovado para fazer a operação. Nas escadarias do Municipal opera-se, principalmente, para três casas de câmbio: Light, Turismo Dez e Brasileiro. Com esta última é mais difícil, porque ela exige comprovante de residência. Mas há quem venda esse documento no local.

Junto comigo, havia outro albergado que, como eu, estava morrendo de fome. O aliciador pediu que acompanhássemos uma moça grávida (sua irmã) até a região dos Jardins. Até então, não sabíamos exatamente o nosso destino. Nós três pegamos um ônibus (a passagem ela pagou) e descemos na rua Augusta, quase esquina com a alameda Santos. Chegando lá, ela nos contou que deveríamos ir à casa de câmbio que funciona dentro do luxuosíssimo Hotel Renaissance para efetuar a operação com dólares.
O repórter que morou nas ruas de São Paulo conta o que viu e o que viveu - parte 1

Eduardo Ribeiro
da coluna Jornalistas e Cia, do site Comunique-se


Ele perdeu tudo o que tinha na vida, inclusive a esperança de viver. Sofreu todos os tipos de humilhação, passou frio e fome, viveu da caridade organizada e nem tão filantrópica assim, perambulou por aí sem lenço e sem documento, tendo as ruas de São Paulo como moradia.

Mas viu muita coisa errada, outras um tanto suspeitas e foi testemunha de uma das ações mais calhordas que alguém minimamente comprometido com a integridade humana pode aceitar: o uso dos miseráveis para promover lavagem de dinheiro, a céu aberto, no centro de São Paulo, nas barbas da polícia.

Humilhado mas com o faro jornalístico apurado, ele também viu miseráveis serem usados como massa de manobra da igreja, que tem se valido do rebanho de desamparados para ter acesso a verbas públicas generosas e também para encorpar movimentos políticos com gente que sequer sabe o que está fazendo.

Rubens Ferreira Marujo, 57 anos, é seu nome e sua história já esteve aqui presente na coluna de 14 de maio, sob o título Sem lenço sem documento e a rua como moradia, que teve imensa repercussão.

Marujo deixou as ruas, mora hoje num pequeno apartamento no centro de São Paulo e após algumas semanas frilando para o Diário do Comércio foi contratado como repórter de Política para cobrir a temporada de eleições que vem por aí. Voltou a ser um cidadão. Ironia do destino, a história da qual foi personagem transformou-se em reportagens para o próprio DC.

As duas primeiras, publicadas respectivamente nas edições de segunda e terça-feira desta semana, estão reproduzidos na íntegra a seguir, autorizadas que foram pelo diretor de Redação do jornal, Moisés Rabinovici, e obviamente pelo autor.

Nelas Marujo conta o que viu e o que viveu, ao lado de centenas de outros moradores de rua, os quais, além do abandono da sorte, sofrem também com os ataques oportunistas de quem, por incrível que pareça, se propõe a tirar vantagem da miséria.

O título da primeira matéria é “Albergado é usado para lavar dinheiro”. A abertura destaca: “Só quem viveu um drama para saber relatá-lo com fidelidade. Durante três meses, o jornalista Rubens Marujo teve de viver em um albergue da Prefeitura.

Uma dura experiência de vida, que lhe trouxe uma visão crua, mas privilegiada da cidade e dos esquemas ilegais que perseguem albergados, desempregados e moradores de rua. Difícil imaginar que aquelas pessoas maltratadas que passam os dias sentadas nas escadarias do Teatro Municipal, no Centro de São Paulo, são usadas como laranjas num amplo esquema de lavagem de dinheiro.

Aliciadores agenciados por doleiros se aproveitam da fragilidade social, emocional e financeira de albergados para, com seus documentos, comprar dólares em casas de câmbio espalhadas por hotéis e shoppings. Por ceder seus documentos, os albergados recebem R$ 15. Tudo isso acontece à luz do dia, todos os dias.”