sexta-feira, novembro 09, 2012

Como destruir um grande jornal

Ethevaldo Siqueira Temo pelo futuro dos maiores jornais brasileiros. A começar do Estadão. Eles estão ameaçados de desaparecer porque ainda não encontraram o modelo de negócios que lhes permita sobreviver nesse mundo caótico do jornalismo eletrônico. O mais grave não é fim dos jornais impressos, cujos dias estão, realmente, contados. Mas a falência das empresas ou instituições por eles responsáveis. É claro que o jornalismo não morrerá. Entretanto, a inviabilidade econômica das empresas jornalísticas significa, acima de tudo, a dispersão das melhores equipes profissionais, a perda da maioria de seus talentos e a desestruturação de um setor. Por conhecer o jornal de perto há mais de 45 anos, meu maior temor é com o futuro do Estadão. Publicação centenária e, sem dúvida, um patrimônio da cultura do País, o Estadão precisa cruzar o abismo da mudança tecnológica e superar o desafio econômico que essa mudança significa. E pode fazê-lo. Creio que ainda há tempo para salvar as empresas ou instituições que fazem os grandes jornais brasileiros. As duas grandes ameaças que podem liquidar essas publicações, não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, são duas: o novo cenário tecnológico e a desvalorização das redações. Diferentemente da degradação progressiva das redações, que pode ser revertida, a quebra dos paradigmas tecnológicos não tem alternativa. Afirmo, por outro lado, que, se a direção e os acionistas assim o decidirem, os grandes jornais poderiam ganhar longa sobrevida com a elevação da qualidade das redações. Afirmo, também, com todas as letras, que a desvalorização da redação não afeta apenas o Estadão, mas muitos outros jornais brasileiros. Nunca me esqueço de uma observação sábia que ouvi certa vez, há quase 30 anos, de Júlio de Mesquita Neto: “A redação é a alma e o coração de um jornal. Máquinas, prédios e móveis são apenas meios físicos”. No entanto, no afã de cortar despesas, os novos executivos das redações estão empobrecendo os jornais, com a perda de seus melhores repórteres, redatores, editores e colunistas – dos mais jovens aos mais velhos e experientes, especialistas e generalistas. Sob pressão de acionistas, os salários se aviltam continuamente, por decisão ou conivência de diretores de redação que parecem agir muito mais como capatazes. O que me move, neste depoimento, é tão somente despertar a atenção de todos para o risco cada dia maior de fechamento dos grandes jornais e revistas brasileiros, a começar pelo Estadão. Faço-o, também, como forma de repúdio à campanha primária e irracional de um grupelho que insiste em acusar a grande mídia de ser um partido político, o PIG (Partido da Imprensa Golpista). Nunca vi cretinice maior. Acredito, sinceramente, que o Brasil precisa de uma imprensa realmente livre, republicana, pluralista, com todos os matizes, desde que comprometida com o bem e o desenvolvimento da sociedade brasileira. É a grande mídia, tanto a impressa quanto a eletrônica, que garante a sobrevivência da democracia, noticiando e debatendo tudo com liberdade plena, sem nenhum controle totalitário ou qualquer forma de censura. Não desejo nem aceito para o Brasil os percalços da imprensa argentina nem da mídia venezuelana. Reconheço, acima de tudo, que o Brasil precisa de um portfólio de jornais e revistas diversificado, capaz de abrigar publicações como o Estadão, a Folha, O Globo, Veja, Istoé, Época, Piauí, Brasileiros, Carta Capital ou Correio Braziliense, para citar apenas alguns exemplos. E relembro as palavras da presidente Dilma Rousseff, no começo de seu governo, ao dizer, mesmo sem o respaldo de seu partido, que “o único controle que o governo admite para a mídia é o controle remoto”. Espero que mantenha, na prática, esse conceito. Por que saí do Estadão Centenas de amigos e colegas me pedem que explique melhor minha saída do Estadão. Esclareço, de início, que não deixei o Estadão por questões salariais, ainda que me desagradasse a perspectiva incontornável de redução de minha remuneração. Muitos leitores talvez tenham lido minha coluna de despedida, no domingo, 21 de outubro de 2012, na qual fiz um balanço dos 45 anos que vivi no jornal. Aos que não o fizeram sugiro que o façam pelo link de meu blog pessoal: http://ethevaldo.com.br/coluna/despedida-apos-45-anos/. Além de agradecer a todos que me escreveram, devo explicar-lhes com toda sinceridade e equilíbrio as razões que me levaram a antecipar a saída do jornal, já que pretendia permanecer ainda por alguns anos, com minha coluna semanal e fazendo matérias especiais na área tecnológica e, em particular, em coberturas internacionais. Mesmo enfrentando problemas de relacionamento pessoal com o diretor de conteúdo do Estadão, Ricardo Gandour, eu ainda estava disposto a continuar no jornal, até porque aprendi a conviver com chefias problemáticas. Sempre tratei Gandour com educação e cortesia. Ele, igualmente, nunca foi rude ou grosseiro comigo. Sempre me disse “não” com um sorriso superior nos lábios. Só não pude tolerar nos últimos meses suas sucessivas interferências e restrições à minha liberdade, na coluna. Conto apenas dois ou três episódios, entre dezenas de situações inaceitáveis que vivi. O caso mais antigo ocorreu em 2006. Uma noite, Ricardo Gandour chegou a ligar para o meu celular, sabendo que eu estava em Londres, às 3 horas da madrugada (meia-noite no Brasil), para censurar uma coluna inteira que eu havia escrito sobre um programa de atendimento ao usuário da antiga Brasil Telecom. Por sorte, eu tinha outra coluna pronta, de reserva, para publicar. Depois, em sucessivas oportunidades, pediu que eu amenizasse minhas críticas à política de telecomunicações dos ministros das Comunicações, tanto de Hélio Costa quanto de Paulo Bernardo. A situação mais grave e inaceitável foi impedir que eu me defendesse diante de uma mensagem do ministro Paulo Bernardo. No texto, publicado no Fórum dos Leitores, por determinação de Gandour, o ministro desmentia categoricamente minhas críticas à sua tolerância e conivência diante de uma licitação da Telebrás, com valores superfaturados em mais de R$ 100 milhões, segundo o Tribunal de Contas de União (TCU). Em lugar de anular a concorrência, o ministro autorizou a Telebrás a “renegociar” os preços inflados. E, creiam, com apoio do TCU. Por isso, minha coluna tinha o título: O TCU não assusta ninguém. Na coluna, eu contava aos leitores que, na entrevista exclusiva com Paulo Bernardo, eu lhe havia perguntado se não lhe preocupavam os aspectos éticos daquela solução heterodoxa. A resposta irrefletida do ministro foi a seguinte: “Quero que a ética vá para o inferno. Eu quero é trabalhar…” Diante da resposta insensata, ainda lhe perguntei se ele não temia que eu publicasse literalmente aquela declaração. “Publique, se quiser”, desafiou. Só por isso, registrei-a em minha coluna, em 25-09-2011. Dias depois, Paulo Bernardo pediu ao diretor de conteúdo do Estadão o direito de resposta, o que foi concedido – coisa perfeitamente justa e cabível –, mas Gandour não me deu conhecimento prévio do desmentido nem me permitiu reiterar a verdade dos fatos, em Nota da Redação. Com o silêncio do jornal, eu passava a ser considerado mentiroso, por decisão e censura do diretor de conteúdo do próprio jornal. Imaginem, amigos, o que significa enfrentar esse tipo de cerceamento, em plena democracia, em 2011, dentro do Estadão, jornal em que vivi a censura imposta pela ditadura, que testemunhei de 1968 a 1975. Com desencanto e desestímulo crescentes, o que me restou nos últimos 12 meses de jornal foi remoer a tristeza das muitas decepções e perceber o clima de desânimo que marca hoje a redação do grande jornal. No organograma empresarial do Estadão falta um conselho editorial que supervisione as diretrizes e as decisões do diretor de conteúdo, o que o transforma em figura absoluta, detentor da última palavra sobre tudo no âmbito da redação. E, infelizmente, nenhum outro diretor, nem o CEO, parece disposto a interferir em seu território, para não ferir “as regras de governança”. Por tudo isso, ao longo dos últimos seis anos da gestão desse diretor de conteúdo, o Estadão tem perdido excelentes profissionais, como César Giobbi, Pedro Dória, Carlos Alberto Sardenberg e Renato Cruz. Chegou a demitir Roberto Godoy, um dos raros jornalistas especializados em tecnologia de defesa do País, com mais de 30 anos no jornal, para readmiti-lo, mas com menor remuneração, depois da repercussão profundamente negativa. E pode perder muitos outros. São diretores como esse, mesmo com currículos brilhantes, mas sem passado nem raízes na história do Estadão, que aceleram o fim do grande jornal.