quarta-feira, dezembro 08, 2010

Esse cadastro é mesmo positivo?

O projeto aprovado no Senado que institui o cadastro positivo para bons pagadores é constitucional? Não vi nenhuma discussão a esse respeito nas inúmeras reportagens de TV e jornais.

Os empresários estão radiantes com a medida e afirmam sem medo de errar que os juros cairão após a promulgação da lei pelo presidente Lula – se der tempo em 2010.

Já as entidades de defesa do consumidor alertam que o projeto embute uma série de problemas, o maior deles a sacramentação da discriminação financeira entre os devedores, alargando ainda mais o abismo entre os consumidores endividados.

A palavra discriminação soa como um palavrão para os representantes das entidades que reúnem lojistas de tamanhos variados e indústrias. O problema é que essas mesmas entidades não conseguem encontrar um tema que defina o que significa para quem deve esse projeto.

Dever não é crime, é uma possibilidade da vida cotidiana de qualquer cidadão que vive em uma democracia capitalista. Governos devem, bancos devem, empresas devem, times de futebol devem (e muito).

A questão que fica é: até que ponto os atuais índices de inadimplência influenciam no custo do dinheiro ofertado no mercado? Será que a quantidade de gente que não paga suas dívidas pode servir de justificativa para as taxas escorchantes de cheque especial e cartão de crédito?

O maior dos problemas ainda não revelados na sua totalidade do projeto do cadastro positivo é a “criminalização” do devedor, já marginalizado pelo rótulo do “nome sujo” ao ser incluído em um dos vários cadastros de inadimplentes.

O cadastro positivo propõe a valorização do bom pagador, inclusive com o “bônus” de condições melhores de pagamento, seja de alongamento de dívida (parcelamento), seja em taxas mais atraentes de juros.

Para o devedor, sobra o reforço da pecha de mau pagador, de inadimplente, o que, em tese, pioraria s sua condição financeira. E então aparece o paradoxo: quanto pior a condição financeira e quanto menor forem as oportunidades de crédito, menos chances de saldar a dívida o inadimplente terá.

Mas parece que essa preocupação passou longe dos autores do projeto que cria o cadastro positivo. Já existe até uma certeza no mercado: as condições para os bons pagadores não melhorarão, mas as dos inadimplentes vão piorar mais.

E o que dizer desta “discriminação” financeira mais acentuada que pode surgir com o projeto? Seria possível questionar a constitucionalidade da medida? Não há consenso.

Importantes juristas e advogados acreditam que faltam alguns elementos para tipificar a infração à Constituição, estabelecendo assim uma diferenciação criminosa entre cidadãos.

Os órgãos de defesa do consumidor, por sua vez, enviaram um manifesto à Presidência da República pedindo o veto do projeto. O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec), Procon-SP e Proteste são contrários ao compartilhamento de informações dos bons pagadores.

As duas maiores preocupações dos órgãos de defesa do consumidor são a violação de privacidade de quem paga suas contas em dia e a discriminação de quem é bom pagador mas jamais fez um financiamento.

“Vínhamos discutindo no Congresso uma série de regras para implantação do cadastro, mas o projeto que foi aprovado não traz nenhuma regulamentação", explica Maria Elisa Novais, gerente jurídica do Idec, em reportagem do Jornal da Tarde.

Segundo ela, é preciso definir as finalidades da listagem, quem poderá ter acesso às informações e que dados serão considerados.

Maria Inês Dolci, coordenadora do Proteste, também em declaração ao JT, questiona ainda o maior argumento dos defensores do cadastro positivo: o de que as taxas de juros aplicadas aos bons pagadores serão menores. “Não há nenhuma garantia de que os bancos vão reduzir juros com a medida.”

A adesão ao cadastro é voluntária. O seu nome só pode constar mediante sua autorização. Você quer mesmo que seus dados fiquem expostos em uma lista suspeita de infringir a Constituição?

domingo, dezembro 05, 2010

O país em que viviemos - e esse cidadão preside o STJ



Ivan Marsiglia - O Estado de S. Paulo

A testemunha descreve a cena tal qual a vítima fez constar no boletim de ocorrência. Por volta das 16h do dia 19 de outubro, o estagiário, após entregar um processo na seção de documentos administrativos, que fica no subsolo do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília, dirigiu-se para a agência do Banco do Brasil no complexo de prédios da corte a fim de fazer um depósito por envelope para uma amiga.

Vestindo camisa polo, calça jeans e sapato social, foi informado por um funcionário da agência de que em apenas um dos caixas eletrônicos poderia ser feita a transação. Justamente aquele, em uso por um homem de terno e gravata, aparentando 1,60 metro, que ele inicialmente não reconheceu. Postou-se atrás de linha de espera, traçada no chão da agência. O diálogo que se seguiu foi o seguinte:


- Quer sair daqui? Estou fazendo uma transação pessoal - disse o senhor, após voltar-se duas ou três vezes para trás, "de forma um tanto áspera", como relataria o jovem, em seu português impecável.

- Senhor, eu estou atrás da linha de espera. - foi a resposta, "em tom brando", como contou, ou "de forma muito educada", na confirmação da testemunha.

- Vá fazer o que tem que fazer em outro lugar! - esbravejou o homem em frente ao caixa eletrônico.

- Mas, senhor, minha transação só pode ser feita neste caixa...

- Fora daqui! - o grito, a essa altura, chamou a atenção de pessoas que passavam e aguardavam na agência.

E foi completada pelo veredicto, aos brados:

- Eu sou Ari Pargendler, presidente deste tribunal. Você está demitido, entendeu? Você está fora daqui, isto aqui acabou para você. De-mi-ti-do!

Assim terminou a carreira do estudante de administração Marco Paulo dos Santos, de 24 anos, na segunda mais alta corte do País. Ele entrara no STJ no início do ano, após passar por um processo seletivo do Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), na capital federal, do qual participaram mais de 200 candidatos.

Marco ficou entre os dez primeiros. Todos os dias, saía do apartamento onde mora com a mãe e o irmão em Valparaíso de Goiás, cidade-satélite a 35 km de Brasília, e levava uma hora de ônibus até chegar ao estágio. Dava expediente das 13h às 19h, pelo que recebia R$ 600 por mês, mais R$ 8 por dia de auxílio-transporte. Pouco importa. Martelo batido.

"Foi uma violência gratuita", avalia a brasiliense Fabiane Cadete, de 32 anos, que estava sentada com uma amiga na fila de cadeiras ao lado dos caixas eletrônicos naquele dia. "Ele (Pargendler) gritava, gesticulava e levantava o peito na direção do Marco."

Chamou-lhe especialmente a atenção a diferença de estatura - literal, no caso - dos dois protagonistas. Marco tem 1,83 metro. "O juiz puxou tanto o cordão do crachá para ler o nome do menino, que as orelhas dele faziam assim, ó", mostra ela, empurrando as suas próprias como se fossem de abano.

Batalha difícil

Fabiane conta que ficou receosa antes de decidir depor em favor de Marco - que, no dia seguinte, registrou queixa por "injúria real" contra o presidente do STJ na 5ª delegacia da Polícia Civil do Distrito Federal.

Funcionária de uma empresa que presta serviços ao tribunal, ela jura que nunca tinha visto Marco antes na vida, mas ainda assim se dispôs a contar o que viu.

A amiga, que tem mais anos de casa no STJ, preferiu se preservar. "Eu não me sentiria em paz comigo mesma se não falasse", explica Fabiane, que cursa direito no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb). "Como futura advogada, fiquei decepcionada com o ministro."

Como Ari Pargendler só pode ser julgado em instância superior no Judiciário, o delegado Laércio Rossetto encaminhou o caso ao Supremo Tribunal Federal (STF), onde o processo corre em segredo de Justiça.

Remetido inicialmente para a ministra Ellen Gracie, esta se declarou impedida por manter relações de amizade com Pargendler. Redistribuído pelo presidente do Supremo, Cezar Peluso, caiu nas mãos do ministro Celso de Mello, jurista que não tem por hábito "sentar em cima" dos casos mais polêmicos.

O depoimento de Fabiane animou o até então cauteloso advogado de Marco, preocupado em não expor seu cliente a uma contraofensiva judicial. "Não tenho vocação nenhuma para Policarpo Quaresma", diz Antonielle Julio, que teve uma prévia das dificuldades que vai enfrentar quando solicitou à gerência do Banco do Brasil no STJ as imagens do circuito interno de segurança, que revelariam facilmente quem está com a razão. Ouviu que o sistema apresentou falha técnica e "não há imagem alguma".

A Bíblia e os 'policiais'

Marco Paulo dos Santos é negro, filho de brasileira com africano e nascido na Grécia. Vista de perto, sua história de vida é tão espantosa quanto o diálogo supostamente travado na agência bancária do STJ.

Sua mãe, a doméstica Joana D’Arc dos Santos, de 56 anos, natural de Raul Soares (MG), passou como ele por um concurso que mudaria o rumo de sua existência.

Ainda solteira, na década de 80, leu um anúncio no jornal Estado de Minas em que a esposa de um diplomata mineiro procurava uma empregada para acompanhar a família em seu novo posto no exterior.

Quando chegou a Belo Horizonte para a entrevista, uma centena de candidatas já havia passado pelo crivo da patroa, mas foi Joana quem levou. "Ela agradou mais de mim", conta, na construção típica da zona da mata mineira.

Em Atenas, Joana conheceu o marinheiro cabo-verdiano José Manoel da Graça, que trabalhava em um navio petroleiro. O namoro deslizava em mar de rosas, quando o patrão recebeu ordens do Itamaraty para se transferir para a Embaixada do Brasil no Chile.

E lá se foi Joana D’Arc de volta para a América. Mas, com banzo de seu africano, em pouco tempo abandonava o emprego para voltar a sua odisseia grega. Amigou-se com Manoel em Atenas e teve com ele dois filhos: Daniel David e Marco Paulo.

Cinco anos depois, foi a saudade do Brasil que bateu e Joana embarcou de volta com os meninos. Primeiro, para Minas; depois, Brasília. Manoel foi navegar outros mares. "Fiquei esperando, porque ele nunca disse que não vinha. Os telefonemas foram rareando, só Natal, aniversário... E Manoel acabou não vindo", dá de ombros.

Hoje, é com a tormenta jurídica do caçula que ela se preocupa. "Sabe como é, a gente foi criada no negócio do ‘deixa pra lá’. Mas ele decidiu assim, entrego nas mãos de Deus."

Em casa, o primogênito Daniel, hoje com 27 anos, é o voluntarioso e bem-humorado. Já Marco sempre foi introvertido e responsável. A mãe conta que, enquanto faxinava nas casas de família, o garoto dava um jeito de se enfurnar na biblioteca dos patrões.

"Sempre foi menino de ler. Passava duas, três horas... eu até esquecia dele." Daí a facilidade, talvez, com que passou em todos os testes que fez até hoje, inclusive o do Prouni - programa de bolsas de estudos do governo, que lhe permite cursar administração no Iesb.

Evangélico, como toda a família, Marco traz sempre a Bíblia debaixo do braço. E algum romance policial de Agatha Christie e Conan Doyle. Mas também passeou por leituras mais substanciosas, como O Príncipe, de Nicolau Maquiavel.

"É uma aula de vida. Ele juntou todo o conhecimento de como se governar, lidar com as pessoas, a política e o poder. É muito útil para um administrador", ensina o estagiário defenestrado do STJ.

Na melodia do Supremo

Outro dos talentos de Marco é a música. Na igreja, deu seus primeiros acordes. E logo conseguiu uma bolsa no tradicional Clube do Choro de Brasília, onde estuda violão de sete cordas.

O professor, o instrumentista carioca Fernando César, de 40 anos, é só elogios: "Ele é um cara supertranquilo, aplicado e musical. Lê muito bem partitura". Empreendedor precoce, escreveu e lançou em junho, por uma editora evangélica, um método de ensino de violão para os fiéis sem condições de pagar por um curso.

Agora, ainda desempregado, dedica-se com mais afinco à execução de clássicos como Vou Vivendo, de Pixinguinha, cujos versos finais são: "Vou vivendo assim/ Porque o destino me fez um vadio/ Novo endereço ele vai traçar/ E virei para te avisar/ Quando à noite uma toalha de estrela/ Tiver para me cobrir".

Mesmo apreensiva, Joana D’Arc não esconde o orgulho pela coragem do filho em enfrentar o presidente de uma das instituições mais poderosas do País. "Antes de ir para a Grécia eu era um bicho assustado. Achava que por ser negra e pobre era normal ser humilhada e maltratada. Mas lá, a gente entrava num restaurante ou em qualquer lugar chique e era recebido como todo mundo. Então, não deixei meus filhos crescerem com esse pensamento meu."

Procurado pela reportagem do Aliás para dar sua versão dos fatos, o ministro Ari Pargendler disse por intermédio da assessoria que não vai se manifestar. No telefone da corte, em chamada de espera, ouve-se a seguinte mensagem: "Ter acesso rápido e fácil à Justiça é um direito seu. STJ, o Tribunal da Cidadania".