sábado, novembro 26, 2011

O ‘mito’ Raul Seixas, ainda tomando pancadas – e com toda a razão

Depois de cinco anos revi um bom amigo da época de faculdade no último final de semana. Ricardo Macedo é um administrador de empresas que trabalha em uma empresa distribuidora de bebidas em Capinas e é um fã de rock pesado. A primeira coisa que lhe pergunto antes mesmo de indagar sobre família, mãe, pai, etc.: “Está tudo bem com seu irmão?” Ele abre um sorriso grande e não hesita: “Ele bateu no Raul mais uma vez”. É um alívio saber disso. O irmão, apenas por parte de mãe e que não terá o nome revelado pois o processo judicial em questão ainda está correndo), vocalista de uma boa banda de hard rock e de covers nos anos 90 no interior paulista, ficou por muitos anos senso assombrado pelo fantasma de Raul Seixas. Fazendo um show intimista e acústico em um bar de bom nível em uma cidade da região de Campinas nos anos 90, o irmão de Ricardo Macedo e sua banda (extinta, mas que também terá o nome preservado pelos mesmos motivos), foram incomodados por mais de 4o minutos por um grupo de bêbados com o indefectível “toca Raul”. O cartaz que anunciava o show no bar e no jornal local não deixava dúvidas: banda de hard rock faz acústico e covers de artistas do estilo. O que a princípio parecia uma brincadeira inocente e depois leve provocação se tornou um inconveniente, pois, de alguma forma, alguém da plateia tratou de fazer chegar á banda que o grupo de bêbados estava falando sério: queriam mesmo ouvir alguma coisa de Raul Seixas – e não somente uma música. A banda tentou ignorar, mas os cidadãos começaram a incomodar a tal ponto que o barulho que faziam obrigou a uma interrupção do show, com direito a uma intervenção de dois seguranças. O mais exaltado do grupo de quatro imbecis, aos berros, gritou: “Quero ouvir Raul! Toca Raul, porra! Quero ouvir e vocês vão tocar!” Não acreditando na baixaria que ocorria, o irmão vocalista de Macedo, muito irritado, fez algum gracejo sobre Raul Seixas e sobre a encheção tradicional a que muitos músicos são submetidos. O bêbado infeliz ficou furioso e se desvencilhou da segurança e avançou no palco para agredir alguém da banda. Acabou tomando uma pancada de pedestal de microfone no rosto e caiu cambaleando no chão. Tentou se levantar e fez menção de tentar novo ataque, conseguindo se soltar novamente dos seguranças. Mal teve tempo de olhar para o palco e tomou novo golpe com o pedestal e desabou. O resultado é que o cidadão, machucado, se achou no direito de processar criminalmente a banda, o vocalista e o bar por ter sido “agredido covardemente enquanto se divertia”. Filho de um rico comerciante da cidade que um dia fora vereador e figura conhecida na área por frequentes confusões (nada muito grave, apenas arruaças e brigas sem consequência), moveu dois processos, e perdeu os dois em todas as instâncias. Tanto o bar como o vocalista arrumaram testemunhas de sobra sobre o que rolou. Quando encontrei Ricardo Macedo, o irmão tinha acabado de “bater” pela terceira vez em Raul Seixas – a primeira nas pancadas contra o bêbado, e depois as duas vitórias na Justiça. O advogado do agredido prometeu recorrer das decisões no Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde certamente sofrerá novas derrotas. A pequena história me motivou a fazer alguns breves comentários sobre Raul Seixas, morto há 22 anos e que estaria fazendo 66 se estivesse vivo. Involuntariamente (ou não?) se tornou alvo de ira ou ao menos de irritação de muita gente que não suporta mais o asqueroso “Toca Raul!”. Músico razoável e cantor nem tanto, teve o grande mérito de cair de cabeça no rock and roll primeiro do que todo mundo neste país tropical e de avançar até onde nenhum artista brasileiro na época ousou. Seixas era radical e culto, tinha estofo para se mostrar contestador sem ser revolucionário. Tinha jeito e coragem (ou inconsequência) para ser provocador como Chico Buarque foi em algumas de suas letras. Se os Secos & Molhados chocavam e posavam de transgressores por conta das maquiagens e posturas de palco, Seixas e seu jeitão de hippie deslocado mostrava que ia muito mais além na transgressão com o mergulho fundo no rock e nos aditivos ilícitos – em vários momentos ao lado do amigo doidão e letrista ocasional Paulo Coelho. O problema é que Raul Seixas foi o único a fazer isso, a fazer rock realmente em uma era dominada por uma música popular supostamente de protesto mas que pouco ou nada serviu de alento, ao menos culturalmente. Era a mesma MPB engessada de sempre, calcada na canção e no samba, com ecos da bossa nova encardida e plagiada do jazz norte-americano e na farsa do Tropicalismo, envolto em pseudo-intelectualismo barato. Raul foi muito mais além do que qualquer um em sua época, e tem méritos por isso. Se é que existiu alguma forma de transgressão nos anos 70, época de chumbo do regime militar, essa transgressão era Raul Seixas. E o músico baiano teve a sorte grande de ter sido o único a fazer isso de forma tão intensa, e usou o rock, o melhor instrumento para esse tipo de transgressão (ou suposta transgressão). E grande parte de sua fama decorre justamente disso, da falta de concorrentes à altura. Por conta disso, o mito Raul Seixas – artista radical, maldito, marginal – se sobrepõe à real qualidade de sua obra musical, que nunca passou de mediada. Sua melhor música é no máximo razoável. É milhões de vezes superior ao de qualquer artista que achava que fazia rock na época, como Secos & Molhados e os intragáveis Mutantes, mas ainda assim não passava de razoável. Raul Seixas e Marcelo Nova nos anos 80: vocalista do Camisa de Venus não curtia Raul quando garoto, mas se aproximou dele e engatou uma interessante parceria, que acabou com a morte de Raul em 1989 Suas músicas se tornaram trilha sonora da contracultura e de certa pseudo-intelectualidade de esquerda por ser palatável e adaptável aos lugares comuns dos discursinhos chatos e vazios de estudantes equivocados. Era a trilha sonora perfeita para ambientes pseudo-políticos infectos, como centros acadêmicos de faculdades – a maioria de quinta de categoria – e botecos de pinga nas proximidades das mesmas faculdades. E, com certeza, 85% dessa gente que se apropriou da obra de Raulzito ignorava por completo o significado das letras – e, dependendo da música, acho que até o próprio autor desconhecia. Resumindo: Raul Seixas é mais um artista superestimado e cujo mito é muito maior do que a qualidade de sua obra. E o mito ainda tem mais força do que se imagina, pois ainda é capaz de impregnar duas gerações após a sua morte com “sua mensagem”. Não creio que era esse o destino que o músico baiano imaginava para o seu legado: virar trilha sonora de gente equivocada e com pouca bagagem intelectual de um lado; de outro, de se tornar sinônimo de chatice e inconveniência com o bordão “Toca Raul!”. Ele merecia isso? Talvez sim, a julgar pela chatice de muitas de suas músicas.

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