sexta-feira, outubro 19, 2012

O lamento de um dinossauro

MARIO CHIMANOVITCH - publicado originalmente na seção Tendências & Debates, da Folha de S. Paulo Como velho jornalista da velha escola, aquela que nos ensinava na unha e nos cascudos de chefias que acatávamos sem chiar, gratos por podermos conviver com nomes cujo simples som nos intimidava, observo que em algum momento algo muito importante se rompeu --e ninguém lhe deu a menor importância. Hoje, por todo lado, apregoa-se que só o novo é bom e todos disputam a honra de serem mais novos do que os demais. Ser velho, nestes tempos estranhos, é ser um estorvo, ser inútil, um dinossauro improvável, movimentando-se num universo de frágeis louças. Eu sou um dinossauro e vivo trombando o grande rabo da minha longa história contra as prateleiras deste mundo asséptico. Acho que estou sobrando. Muito se fala, nos discursos eleitoreiros, das bondades que cada campanha sugere a seu candidato, para agradar a nós, os mais velhos. Cada vez que vejo um almofadinha desses abraçando a senhorinha sofrida e prometendo-lhe mundos e fundos, a ira me sobe à cabeça e por pouco não arremesso a bengala que me ampara de encontro ao televisor. Porque, no fundo, no fundo mesmo, o que todo mundo quer é tirar a nós, os velhos, do caminho e dos cofres da previdência. Somos aquelas criaturas que parecem servir, apenas, para confrontar cada jovem pimpão com sua própria finitude e com o fato de que a única alternativa disponível à morte, por enquanto, é mesmo sobreviver, como der. E é aqui que a coisa complica. Provavelmente nunca na história se desprezou tanto a experiência e a memória dos mais velhos como nas últimas décadas. Se você, como eu, é um jornalista "das antigas", vale menos que um PC 386, daqueles que um dia pareceram uma enorme inovação e hoje não passam de lixo eletrônico descartável e, como tal, ambientalmente incorreto. Eu me sinto ambientalmente incorreto quando tento mostrar o muito que a memória de duas guerras cobertas, alguns prêmios de imprensa e reportagens memoráveis, inutilmente, me ensinou. Desempregado desde 2007, sobrevivendo de cada vez mais raros bicos, sinto que cheguei aos meus limites. A autoestima se esfacela e posso entender porque tantos não resistiram e acabaram sucumbindo ao álcool, às drogas ou, tanto pior, à ideia da própria morte. Tolo e romântico que sempre fui, imaginava que essa vivência toda, mais tarde, me permitiria ajudar os mais novos a melhorarem o mundo imperfeito que é o campo de colheita dos bons jornalistas. Ledo engano, porém. Tudo o que a história pode ensinar a um jovem, ao que parece, pode ser encontrado nos meandros da nebulosa da internet. Com a vantagem de que lá não haverá nenhum velho chato para dizer que noutros tempos, no meu tempo, algo era assim ou assado por causa disto ou daquilo. A informação brotará do tablet, cristalina, fria e desinfetada pelo distanciamento tecnológico. O dedicado repórter, com o ímpeto de seus jovens anos, vai poder navegar pelos escaninhos da memória que me resta, sem precisar me aturar e a minha própria história. Acho que vou ter de procurar emprego de empacotador de caixa de supermercado. E se um dia algum candidato se aproximar de mim, entre um pé de alface e uma caixa de ovos, agradecerei cada migalha que os governos me oferecerem como dádiva. Ao menos assim, talvez, eu tenha alguma utilidade.

quarta-feira, outubro 17, 2012

A volta da censura, por Hélio Schwartsman*

Publicado originalmente no Folha.com, de 4 de outubro de 2012 Em tempos de YouTube e celulares com câmera, nos quais praticamente qualquer cena presenciada por um ser humano pode ser registrada e disponibilizada para todo o planeta, não é surpreendente que assistamos a um número cada vez maior de pedidos de censura judicial, isto é, de pessoas exigindo, via Judiciário, que as imagens e comentários sejam retirados da rede de computadores. O fenômeno chega ao paroxismo agora que o Brasil vive um período eleitoral em que milhares de postulantes a prefeito e vereador tentam evitar tudo o que possa prejudicar-lhes a candidatura e, para isso, contam com a mão amiga de uma Justiça Eleitoral excessivamente intervencionista e pouco afeita aos cânones do liberalismo político. A fórmula é complementada ainda pelos místicos e moralistas de sempre, que buscam na Justiça e fora dela calar as manifestações com as quais não concordam. A conjunção desses fatores levou a uma onda de proibições que ficou evidente na semana passada, com a detenção de um diretor da Google que se recusara a cumprir ordem judicial e várias notícias de censura a sites. Até o trailer do polêmico filme "Inocência dos Muçulmanos" foi proscrito no Brasil. Meu momento favorito, porém, é a campanha do deputado federal Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) para proibir ou pelo menos tornar impróprio para menores de 18 anos um longa-metragem juvenil que traz cenas de um ursinho de pelúcia fumando maconha. Ninguém com um pouco de amor à lógica pode defender direitos de forma absoluta. Afirmar qualquer um deles em grau superlativo implica relativizar e eventualmente até negar todos os demais. A menos que acreditamos que só existe um direito digno deste nome, temos de aprender a conviver com o conflito entre normas constitucionais. Mesmo reconhecendo isso, advogo por uma liberdade de expressão robusta, como sabem os que acompanham minha coluna. Acho que o direito de manifestar a opinião deve abarcar até mesmo nazistas que defendam teses racistas e pedófilos que descrevendo suas preferências sexuais. Enquanto estamos no campo das ideias, vale tudo. É só quando algum desses malucos tenta pôr seus delírios em prática que o Estado, particularmente a polícia, deve intervir. Não faço isso por nutrir um fetiche secreto pela liberdade de expressão. A questão também é lógica. Ninguém precisa de licença para dizer o que todos querem ouvir. Se as salvaguardas à manifestação livre de ideias fazem algum sentido (e eu tentarei mais abaixo mostrar que fazem), é preciso que abarquem justamente aquilo que a maioria considera infame, desprezível e, portanto, digno de ser censurado. Depois de uma defesa tão entusiasmada da livre opinião, acho que preciso dar exemplos de limitações que considero razoáveis, sob pena de a estar absolutizando sub-repticiamente. Pois bem, creio que em diversas situações em que a liberdade de expressão entra em choque com o direito do cidadão à própria imagem é a segunda que deve prevalecer. Não é aceitável, por exemplo, que alguém publique uma calúnia ou mesmo uma informação demonstravelmente falsa sobre outrem. Nestes casos, cabe não apenas uma reparação como também a retificação dos dados. Não tenho a mesma convicção no que diz respeito a injúrias e difamações. Como elas dão muito mais margem à subjetividade, fica fácil colocar obstáculos à publicação de uma obra legítima com base em considerações metafisicamente pessoais. Não é por outra razão que biografias se tornaram um gênero literário ameaçado de extinção no Brasil. O artigo 20 do novo Código Civil, ao postular com força a tese da defesa da "honra, boa fama ou respeitabilidade" permite que até descendentes remotos censurem esse tipo de trabalho. Pior, podem fazê-lo "a priori". Outro ponto em que insisto é que o direito à autoimagem só deve valer para pessoas físicas, não para grupos. Caso contrário, sempre que um autor imprecar contra a natureza humana, estará se sujeitando a ser processado e censurado por qualquer um dos 7 bilhões de terráqueos. Em suma, se você pertence a uma categoria que se sentiu ofendida pela declaração de alguém, ofenda o bando de seu agressor e todos ficam felizes. Resta agora apenas tentar mostrar por que a liberdade de expressão merece tanta consideração. Uma possibilidade é que, numa manifestação da religiosidade iluminista, nós, liberais, a tivéssemos convertido numa espécie de ícone sagrado da laicidade, que defenderíamos de todos os ataques como fazem os muçulmanos com Maomé. É uma hipótese divertida, mas não creio que resista a uma análise mais detida. A diferença fundamental é que, enquanto a preservação da imagem de Maomé interessa apenas aos fiéis do islamismo, a liberdade de expressão regula um elemento essencial para o funcionamento da sociedade, que é a circulação de informações. Como escrevi na semana passada numa coluna da edição impressa, sem a troca de ideias entre múltiplas partes, a própria democracia cessa de funcionar. Um de seus pressupostos é o de que um eleitor razoavelmente informado escolhe seus dirigentes. Uma imprensa livre também é necessária para controlar as ações dos dirigentes. Não é uma coincidência que ditadores invariavelmente comecem sua escalada autoritária calando as vozes dissonantes. E o papel virtuoso das informações não está restrito à política. O trânsito de ideias também é fundamental para a ciência. Um dos antecedentes necessários à revolução científica que se esboçou a partir do século 16 na Europa foi a invenção dos tipos móveis por Johannes Gutenberg. É claro que havia livros antes disso, mas, produzidos artesanalmente por copistas, eles eram obscenamente caros. Um volume de cerca de 500 páginas saía pelo equivalente a US$ 20 mil de hoje. Apenas gente podre de rica podia dar-se ao luxo de possuir essas obras. Foi só depois da imprensa que as ideias que estão na base da ciência puderam atingir o ponto crítico a partir do qual provocaram grande impacto. Não é um acaso que esse período também marque o início do movimento de secularização da sociedade. E a ciência, nunca é demais lembrar, é a principal responsável pela era de bem-estar material e sanitário que vivemos. Até a revolução industrial, que pode ser descrita como a domesticação do vapor pela ciência, o crescimento econômico anual médio da humanidade era da ordem de 0,1%. De lá para cá, o padrão de expansão explodiu, com vários países sustentando taxas de dois dígitos ao longo de décadas. Pela primeira vez, o crescimento ocorreu mais rapidamente do que o aumento da população, gerando uma prosperidade nunca antes imaginada. É por isso que há uma corrente de economistas encabeçada por Julian Simon que sustenta que a riqueza, em última análise, são ideias, a capacidade das pessoas de inovar. A imaginação humana, dizem, é o recurso final. Se essa tese é correta, limitar a liberdade de expressão equivale a um suicídio social, algo que nem candidatos nem fiéis de nenhum credo parecem muito dispostos a fazer. *Hélio Schwartsman, 44 anos, é articulista da Folha. Bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve para a Folha.com.e na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos