O deus Clapton visita o diabo Robert Johnson
Jotabê Medeiros/AE
No Delta do Mississippi, mítico rio do Sul dos Estados Unidos, existe um bar-estalagem chamado Shack Up Inn, cujo slogan é o seguinte: "O mais antigo B&B (Bed & Beer, cama e cerveja) do Mississippi, um lugar para os peregrinos ficarem enquanto procuram a encruzilhada onde se supõe que o pioneiro bluesman Robert Johnson vendeu sua alma ao Diabo."
Robert Johnson, como se vê, tornou-se mais que um músico; tornou-se parte da mitologia de um gênero. É parte das oferendas feitas em um rito pagão, como a cachaça e o frango preto no despacho. Esse pacto que ele teria feito com o tinhoso em troca da fama já alimentou a ficção de diferentes maneiras. No filme A Encruzilhada (Walter Hill, 1986), com Ralph Macchio, tudo se resolvia com um duelo de guitarras.
Eric Clapton, cujo nome também virou lenda na Inglaterra ("Clapton is God", dizia uma pichação num muro de Londres, em tempos idos), construiu sua reputação em afinada sintonia com o blues de Johnson, Muddy Waters e John Lee Hooker, pioneiros do blues americano. Sua reverência ao blues está registrada nos discos com seus primeiros grupos, o Cream e os Bluesbreakers de John Mayall.
Para não deixar dúvidas, ele gravou com uma das autoridades supremas do gênero, B.B. King, o disco Riding with the King. Seria de se esperar que, um dia, Eric Clapton resolvesse encarar o maior dos desafios: gravar um disco apenas com o repertório de Robert Johnson. E isso acabou acontecendo. Me and Mr. Johnson (Warner Music), que chegou há alguns dias às loja brasileiras, é um dos mais refinados álbuns do ano. O nome do disco remete ao auto-de-fé de Johnson, a canção Me and the Devil Blues, que Clapton, é claro, gravou.
O álbum traz 14 canções das 23 únicas composições que Robert Johnson legou para o repertório do gênero. Para acompanhá-lo, ele convidou uma legião de bons amigos: Steve Gadd e Jim Keltner (baterias), Nathan East e Pino Paladino (baixos), Billy Preston (piano e órgão), Andy Fairweather Low e Doyle Bramhall 2.º (guitarras) e Jerry Portnoy (gaita).
O repertório procurou ser representativo com o legado de Johnson, e ainda assim incluir algumas coisas que têm sido menos exploradas no seu espólio, como If I Had Possession over Judgement Day. Mesmo outras, como Love in Vain, já revisitada com energia pelos Rolling Stones, ganha leitura - digamos assim - menos "sensacionalista" do guitarrista. Por causa desses cuidados, ele chegou a ser acusado por fãs de demonstrar pouca "paixão" nas versões.
Em sua defesa, basta lembrar que, quando Clapton gravou seu disco Unplugged, já tinha feito duas reverências a Johnson, registrando Malted Milk e Walking Blues. E as duas tinham o mesmo tratamento que essas versões recebem agora. Os sentimentos místicos e misteriosos do blues, sua tradição de sofrimento e redenção, seu caráter de amálgama cultural. Tudo isso está na música de Robert Johnson, que Eric Clapton compreende como poucos.
"I got to keep moving" ("Preciso continuar"), cantava Robert Johnson, em Hellhound on My Trail, uma das pérolas do CD. "I got to keep moving, blues falling down like hail, blues falling down like hail... And the day keeps ‘minding me, there’s a hellhound on my trail, hellhound on my trail, hellhound on my trail." ("Preciso continuar, a tristeza caindo como granizo, a tristeza caindo como granizo... E o dia fica me lembrando, há um demônio em meu caminho, demônio em meu caminho, demônio em meu caminho.")