A defesa da liberdade expressão - 2
CORREIO SOB CENSURA
Carta aberta dos jornalistas do Correio Braziliense
A carta abaixo está assinada por 151 jornalistas, fotógrafos, estagiários, artistas gráficos, diagramadores e auxiliares administrativos da redação do Correio Braziliense:
É, sim, a mais profunda indignação que nos move a escrever essa carta. É, mais ainda, a certeza de que há quase nove anos o Correio Braziliense tem feito jornalismo da melhor qualidade, reverenciado pela criatividade e ousadia, tantas vezes premiado, em praticamente todas as editorias, de turismo a política, de esportes a economia. Até quando erramos feio fomos premiados. Porque assumimos o erro em manchete de primeira página, gesto inédito no jornalismo brasileiro.
Nesses tantos anos de jornalismo de verdade, os repórteres do Correio rodaram centenas de milhares de quilômetros dentro do Distrito Federal. Conhecemos os dramas, as dificuldades e as conquistas dos brasilienses de todas as classes sociais. Perscrutamos, dia a dia, a vida da cidade criada por Juscelino, Lucio Costa e Oscar Niemeyer. Repórteres, a maioria muito jovens, recém-saídos da universidade, saem às ruas de peito aberto, de segunda a segunda, para ver, ouvir, perguntar, perguntar de novo e relatar os movimentos, as angústias e as vitórias desta cidade igualmente tão jovem. Jornalismo é isso. Ver, ouvir e contar para quem não pôde ver nem ouvir em tempo real o movimento da cidade, do país, do mundo.
Podia ser simples assim, não fossem os muitos interesses obtusos de quem quer cegar e calar o jornalismo genuíno. Faz tempo que nós, jornalistas do Correio, sofremos diariamente insinuações, ameaças, agressões no exercício diário da reportagem. Nada não. Não somos os primeiros, não somos os únicos, e jornalismo se faz assim mesmo – na contramão de quem quer ficar impune. Nada disso nos faz diferentes nem heróis. Corremos o mesmo risco que todos os brasilienses, o de perdermos, definitivamente, o privilégio de morar numa cidade planejada, moderna, de altos índices de qualidade de vida. De podermos respirar o ar puro da pluralidade democrática, da convivência civilizada entre pensamentos divergentes, da disputa sadia de idéias e projetos.
A despeito de todos os defeitos que o Correio Braziliense possa ter – porque erramos, sim; talvez tenhamos errado na dose, errado no tom, errado no jeito –, a despeito de todas as nossas falhas, este jornal transmite as ondas da cidade; aonde Brasília vai, nós vamos atrás. Tem sido assim há mais de 27 mil edições, das mais alvissareiras, como quando um time de Brasília, o Brasiliense, disputou pela primeira vez a decisão de um torneio nacional (Copa do Brasil) ou quando saímos às ruas aos milhares para pedir a paz no trânsito e fomos pioneiros no respeito à faixa de pedestre. Às mais dramáticas, como quando jovens de classe média puseram fogo num índio ou mataram João Cláudio Cardoso Leal a pancadas.
Às vésperas de um dia decisivo para a plenitude democrática deste país, temos medo da derrota. Corremos o risco de perder o gravador, a caneta, a máquina fotográfica, os olhos e os ouvidos da Brasília que a gente tanto gosta e que elegemos como a nossa cidade. Isso porque anunciam-se mudanças na presidência e na direção do jornal. Estamos fraturando, neste momento, a secular idéia de que jornalista não se une a patrão. Fazemos essa ruptura sem nenhum temor. Porque ao longo dessas quase três mil edições, o Correio Braziliense deu provas de que faz jornalismo independente, de que denuncia, investiga, escancara, recua quando necessário, enaltece, festeja, critica, lança mão de todas as ferramentas da democracia.
E disso bem sabem os leitores deste jornal. Que se recorra aos mais de três mil e-mails e centenas de telefonemas recebidos desde que a redação foi invadida por um oficial de Justiça para censurar a edição de quinta-feira passada. Nesse mesmo dia, o presidente dos Associados e do Correio Braziliense, Paulo Cabral de Araújo, e o diretor de Redação, Ricardo Noblat, anunciaram o afastamento de seus cargos a partir de 1º de novembro. O que significa pôr em risco a continuidade desse projeto. É tudo o que não queremos, é tudo o que Brasília não quer, e dizemos isso sem o risco do exagero ou do ufanismo. Dizemos isso sustentados no vigor das palavras dos milhares de leitores que escreveram ou ligaram para a redação nos dois últimos dias.
Não é mérito nosso. É nossa função. Ganhamos para isso, nos formamos para isso, aprendemos no dia a dia que é assim que se faz jornal. Essa cidade tão moça ainda não forjou publicações independentes e soberanas, capazes de sobreviver à margem dos interesses abjetos deste ou daquele grupelho político. Por isso, o Correio Braziliense ganha um lugar tão fundamental para a oxigenação das idéias, dos debates, do pensamento de Brasília.
Uma cidade muda se não quiser se tornar muda.
E nós, brasilienses por nascimento e por afeição, sabemos que não é fácil entender essa cidade tão peculiar. O projeto editorial inaugurado em fevereiro de 1994, que jogou os releases no lixo e aposentou o discurso burocrático e oficioso, corre perigo.
A linha editorial deste jornal conseguiu um feito raro na história de dignidade da imprensa na capital, conseguiu autonomia. Manteve-se íntegra mesmo quando irritava o poderoso de plantão. Anulou a prosmicuidade das amizades aduladoras, muitas vezes mescladas com dinheiros ou cargos. Era a famigerada imprensa chapa-branca. O atual jornalismo praticado pelo Correio Braziliense se livrou de tudo isso – e não foi fácil, era um hábito incrustado nas máquinas de escrever.
Em nome dos quase três mil leitores que mantiveram contato com a redação nos dois últimos dias, e dos silenciosos porém igualmente angustiados com a hipótese de perdermos a força de nossa voz, nós, jornalistas do Correio Braziliense, lançamos esse manifesto aberto a toda Brasília. Não podemos lançar no abismo essa imprescindível conquista de cidadania. Queremos assegurar que o projeto editorial tão premiado e aplaudido continue.
Brasília, 26 de outubro de 2002