Marcelo Moreira
Educado, respeitoso, gentil e imprevisível. Rod Stewart se diverte com a descrição do amigo Jeff Beck, parceiro musical há quase 55 anos, desde os enfumaçados pubs da periferia de Londres. São tão amigos que as brigas sempre terminam em cerveja.
Imprevisível é a palavra que pode qualificá-lo com exatidão, além de "gênio" e "inovador" - o maior guitarrista de todos os tempos, já que Jimi Hendrix, para muitos, não era desse planeta.
Talvez a maior prova de imprevisibilidade de Beck seja o álbum "Blow By Blow", lançado há 45 anos e tido pela maioria dos fãs como o seu melhor disco.
Como pode ser o melhor disco de um dos maiores nomes do rock ser um álbum de... jazz? Pois é, o mestre das seis cordas trocou um passado roqueiro e bem lucrativo pelo arriscado mundo do jazz rock e por caminho antes só trilhados por músicos de altíssimo calibre, como John McLaughlin e Allan Holdsworth - na realidade, os dois nunca foram de fato instrumentistas de rock.
Beck não pensou duas vezes em mudar tudo em meados de 1974. Quando queria mudar mas não reunia coragem para comunicar isso aos então parceiros, ele simplesmente sumia, aproveitando a fama de retraído, recluso e reservado.
Era então a sua fase mais pesada, investindo no hard rock vigoroso no trio Beck, Bogert and Appice. Carmine Appice (bateria) e Tim Bogert (baixo e vocais) formaram a cozinha do Cactus e do Vanilla Fudge.
Ambos foram surpreendidos um ano meio antes quando Beck acabou com sua banda de rock/funk rock para propor a formação de um trio de rock pesado. Seus então ex-companheiros souberam de seus planos pela imprensa.
Seguindo a tradição, ambos também souberam de que o guitarrista inglês tinha aderido ao jazz e iniciado sua carreira solo pelas revistas britânicas. Não gostaram nem um pouco, pois estavam estúdio gravando o segundo álbum do trio.
Beck sumiu no final do primeiro semestre de 1974 e só reapareceu no ano seguinte, com "Blow By Blow" debaixo do braço e mostrando uma técnica ainda mais invejável ao lado de um time de instrumentistas maravilhosos.
Com a segunda encarnação do Jeff Beck Group ela já tinha dado os primeiros passos com a gravação da fenomenal "Definitely Maybe", de sua autoria, lançada em 1972, um tema instrumental e sua autoria que transborda sentimento, melancolia e paixão.
O rock pesado logo cansou sua guitarra e ele começou a observar o que tinha em volta e mergulhou no jazz do baterista Billy Cobham, do guitarrista John McLaughlin e sua Mahavishnu Orchestra e também na alegria contagiante dos discos de Stevie Wonder e Carlos Santana.
in
"Blow By Blow" foi uma espécie de libertação para Beck. Angustiado com o que considerou limitação dentro da estrutura rock de canções, viu seu mundo se expandir na exploração de novas sonoridades e embarcar na composição de novas estruturas musicais.
Para a empreitada considerada por ele como monumental, foi necessário o recrutamento de George Martin, o produtor dos Beatles. Da segunda encarnação do Jeff Beck Group ele resgatou o amigo e fenomenal tecladista Max Middleton. Como participação especial, Stevie Wonder tocou clavinete. Completaram o time o baixista Phil Chen e o baterista Richard Bailey.
Das nove músicas, duas era de Wonder, a estupenda "'Cause We've Ended As Lovers", que virou um clássico da música mundial na guitarra de Beck, e "Thelonius", outra peça maravilhosa.
O brilho continua no resgate de uma preciosidade dos Beatles, "She's A Woman", tranformada em uma outra canção, mais poderosa e eloquente, assim como Joe Cocker fez com "With a Little GHelp From My Friends", também de John Lennon e Paul McCartney.
Do mesmo nível é a releitura de "Diamond and Dust", clássico do rhythm and blues composto por Bernie Holland, que exala pureza e suavidade na guitarra de Beck e nos arranjos de cordas magníficos de Martin.
O antigo lado A do LP conta com quatro composições de Beck, sendo que duas viraram clássicos instantâneos - a vigorosa e energética "You Know What I Mean" e a extraordinária e surpreendentemente pesada "Scatterbrain".
Com a inauguração de uma nova fase com um álbum desse calibre, Jeff Beck passaria os próximos seis anos neste ambiente de excelência musical, que incluiu uma sequência igualmente arrasadora, em disco com "Wired", de 1976, e uma prolífica parceria com o tecladista Jan Hammer, que mais tarde se notabilizaria como compositor de trilhas sonoras para cinema e seriados de TV.
O ponto final viria com outra obra-prima, "There and Beck", de19809, recheados de hits que até hoje são executados por ele em seus shows. Curiosamente, o guitarrista relega as músicas de "Blow By Blow" para o findo da gaveta, executando-as muito raramente após a década de 80.
"Blow By Blow" é o ponto de uma carreira repleta de pontos altos. Pouquíssimos guitarristas de rock que se aventuraram na praia do jazz rock foram bem-sucedidos, pois a base de comparação é muito alta. É um álbum necessário para estar entre os dez mais para levar a uma ilha deserta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário