Memórias da Sarjeta - 1
A Sarjeta, assim mesmo, com maiúscula, é um dos melhores bares de São Paulo. Não passa de uma cabine de fiscal de ônibus estendida, localizada em frente ao prédio de um grande jornal na zona sul de São Paulo. A frequência é dominada por motoristas e cobradores de ônibus do Largo 13 de Maio, em Santo Amaro, que fica muito próximo. Também aparecem por lá alguns jornalistas e figuras excêntricas. Existe, no período noturno, um concorrente da Sarjeta, que é a Kombi-Sarjeta, um veículo transformado em bar quando enconsta na calçada. Mas a Kombi-Sarjeta não tem o charme da Sarjeta: é mais limpa e mais organizada, não tem moscas, os lanches não são ensebados. A Sarjeta é um absurdo de ruim. Mas é barata. E é um dos melhores bares de São Paulo.
Memórias da Sarjeta - 2
Um belo dia, parei o meu carro em frente à Sarjeta, correndo o risco de ter a lateral destroçada pelos ônibus assassinos que passam pela rua. Como trilha sonora no toca-fitas para aquele lugar absurdo, um pouco de jazz instrumental. Jazz tradicional, big bands, Wes Montgomery, Buddy Rich. Acompanhando o nosso grupo de beberrões, um editor de caderno do jornal que fica em frente. O cara acertou todos intérpretes da fita, coisa que eu mesmo não lembrava de cabeça.
Após uma interessante conversa sobre os grandes nomes do jazz, com destaque para Art Blakey, MIles Davis, Billy Cobham e até mesmo o roqueiro Jeff Beck, todos enveredam para a literatura e o new journalism de Gay Talese, Gore Vidal, Truman Capote e outros. Sarjeta também é cultura.
Memórias da Sarjeta - 3
Desde que comecei a frequentar a Sarjeta a Patricinha do Cerrado acompanha o nosso grupo de beberrões. Bonita, morena e goiana, aspira os píncaros da glória no jornalismo, mas tem de se contentar com as nossas conversas moles e com os papos absurdos dos motoristas e cobradores. Bebe cerveja, mas exige sentar em um dos poucos bancos que o local oferece. Sempre ficamos de pé e os bancos servem de mesa para garrafas e copos. A Patricinha do Cerrado nos obriga a segurá-los para que ela possa, toda faceira, sentar-se e observar aquela fauna maldita do jornalismo e do cotidiano da vida em geral. Patético.
Memórias da Sarjeta - 4 - O dia em que o bar foi embora
Para nós frequentadores de bar, pouca coisa é novidade. Já frequentamos estabelecimentos de todos os tipos, dos mais sofisticados e caros aos mais nojentos e baratos (como a Sarjeta). Já ficamos até amanhecer nos bares, já fomos sutilmente expulsos com a conta jogada na mesa sem ser solicitada, já tivemos nossos pés lavados pelos garçons, já tivermos a chave do bar deixada conosco enquanto o dono ia embora dormir pela manhã.
No entanto, nunca tinha visto o bar ir embora e deixar os bebuns na mão. O decano de nosso grupo conta (e tem testemunhas) que um dia optou pela Kombi-Sarjeta em vez da Sarjeta original (ou fixa, como queiram). Após horas de bebedeira, sobraram três cidadãos. Bêbados. Um deles inclusive perde uma camisa toda a sexta-feira quando se esfrega, de costas, na parede áspera e cheia de "chapiscos".
O decano está de costas para a Kombi. Não percebe que o pequeno toldo e minúsculo balcão haviam sido retirados. No meio daquela conversa mole de bêbados, o dono do "estabelecimento" fica esperando e esperando. O decano acaba de beber a sua 48ª lata de cerveja. Amassa-a, vazia, e joga-a no chão. Vira-se para pedir mais uma. Estranha. O bar não estava lá. Após cinco minutos de reflexão, ele entendeu o que aconteceu. O bar tinha ido embora. O dono cansou de esperar os três bêbados e foi embora sem cobrar. E ainda foi xingado por conta dessa "desfaçatez".
Memórias da Sarjeta - 5
Alta madrugada, um bando de jornalistas bêbados está reunido na Kombi-Sarjeta. Primeiro eles ligam, por celular, para uma piazzaria da região. Pedem três pizzas. Endereço de entrega: Sarjeta Mercantil. O atendente anota e nada mais pergunta. Vinte minutos depois as pizzas chegam.
Saciada a fome, alguém encosta um carro velho próximo à Kombi e liga o som. Todo mundo esperava pagode ou sertanejo ou outra coisa ruim do gênero. Entretanto, entram os primeiros acordes de "Carmina Burana", de Carl Off, uma das mais conhecidas peças eruditas da história. Dois "casais" de jornalistas não se contém e começam a "dançar" valsa para imortalizar aquele episódio. Patético e vergonhoso.
Memórias da Sarjeta - 6
Sarjeta lotada de jornalistas, taxistas e cobradores por volta de 22h, horário em que uma carreta estaciona em frente ao jornal para abastecê-lo de água. Durante uma manobra, em frente à entrada principal do jornal, o caminhão simplesmente passa por cima de um automóvel Gol que insistia em entrar no prédio onde não via espaço. O carro pertencia ao chefe de segurança e era novinho.
Na impaciência, o motorista do carro não quis esperar o fim da manobra da carreta e tentou passar por uma fresta, bem ao lado de um poste. Só que o caminhão inverteu a marcha de ré para a primeira e projetou-se para frente, lentamente, mas o suficiente para pegar o Gol de lado.
O caminhoneiro, sem visão periférica, já que o cavalo mecânico era muito alto, só percebeu o que acontecia após muitas buzinadas do motorista do carro. A lateral do Gol ficou destruída. Bem-feito para o imbecil apressado. O episódio serviu para animar a Sarjeta naquela noite fria.
Memórias da Sarjeta - 7
No ponto de táxi que existe em frente ao jornal e à Sarjeta, trabalha um casal, marido e mulher, ela com uma Blazer e ele com um Gol atualmente. Alguns anos atrás, o marido tinha um Voyage. Eis que nessa época surgiu um boato de que um dos taxistas estaria "paquerando" a mulher do cidadão do Voyage. O cara foi tirar "satisfações" com o suposto paquerador. Este simplesmente desdenhou da acusação, afirmando que jamais tinha feito aquilo.
O motorista do Voyage era chato e continuou insistindo na história, querendo confusão. Depois de dez minutos, o acusado, irritado, solta a pérola: "Você acha que eu ia querer algo com aquela baranga?"
O marido enfurecido, parte para cima do oponente. Separados por outros colegas de trabalho, não chegam a se agredir. Mas o marido continua enfurecido, irado. Desvencilha-se dos colegas e corre para o seu Voyage. Engata a primeira, mira na porta do carro do acusado, um Kadett, e bate com tudo. Dá ré e parte para nova investida. O "paquerador" assiste àquilo incrédulo, mas ainda tem tempo para entrar no carro e evitar danos maiores na segunda investida, que pegou de raspão na lateral direita traseira do Kadett.
Durante cinco minutos, os dois contendores "brincaram" de bate-bate de parque de diversões e destruíram seus respectivos veículos. Testemunhas garantem que nenhum dos dois estava bêbado. Hoje continuam trabalhando juntos no mesmo ponto de táxi, conversam normalmente e não falam sobre o assunto em questão.
Memórias da Sarjeta - 8
Existe uma árvore a uns dez metros à esquerda da Sarjeta. Houve épocas que ela era frondosa e florida. Depois de um tempo, começou a perder folhas e flores. Coincidentemente, na mesma época virou banheiro dos frequentadores da Sarjeta. A árvore ficou seca. Depois de muito tempo, os mijões sumiram e a árvore voltou a dar flores e folhas.
Memórias da Sarjeta - 9 - Histórias de Cuba e da Rússia
Sarjeta também é cultura. Um dos tradutores do serviço de espanhol do jornal em frente à Sarjeta é um intelectual no melhor sentido da palavra. Engenheiro civil e de petróleo cubano, formado nas mais rigorosas escolas da terra de Fidel Castro, é tão negro que parece ser de cor azul escura.
No Brasil há mais de cinco anos, é de uma educação e de uma erudição exemplar. Entretanto, adaptou-se perfeitamente às nossas terras. Fala muito bem português, é bem-humorado e, de tão malandro, mais parece um baiano do que cubano. Uma conversa com o cubano-baiano (recém-casado com uma brasileira) na Sarjeta, regada a cerveja meio sem gelo em copo de plástico, é uma aula de história.
Memórias da Sarjeta - 10 - Histórias de Cuba e da Rússia
O cubano que é tradutor no jornal em frente à Sarjeta também é professor de espanhol para um grupo seleto de jornalistas. Entretanto, já deu aulas de física em Cuba na década de 70, mas sua formação original é engenharia na área petrolífera. Essa formação o levou a trabalhar entre 1968 e 1973 na União Soviética.
São várias as histórias que conta a respeito do difícil cotidiano russo: frio de 30 graus negativos, falta de gêneros básicos de toda a espécie, medo de ser atendido nos hospitais russos e ter de passar por uma cirurgia nas mãos dos açougueiros moscovitas...
A melhor de todas, no entanto, é a aquela em que ele foi atração em uma cidadezinha do interior da Geórgia, nos montes Urais, então União Soviética. Único negro de um grupo de cubanos, ele acabou sendo tratado como alienígena na cidadezinha, onde nunca cidadão daquela cor tinha pisado. Negro, por lá, apenas em fotos de jornais e no cinema. Por onde passava, multidões se aglomeravam para ver o estranho.
No hotel, a recepcionista, uma velhinha, disse, passando a mão com força em seu rosto: "Tadinho, o que fizeram com você, passaram óleo na sua pele, que brincadeira nojenta..." O cubano quase bateu na velha.
Em Cuba, trabalhou para o Partido Comunista nos anos 80 e foi o cicerone de Lula, Jair Meneguelli, Luis Eduardo Greenhalgh e outras lideranças brasileiras de esquerda que lá participavam de congressos internacionais. Até hoje é amigo de Lula.