Julio Maria - O Estado de S. Paulo
E Nuno Mindelis estava no palco, sete meses depois. Entre medo, saudade e protocolos, estar em uma plateia de pessoas que não assistiram a nenhum show desde que o mundo passou a sofrer a devastação provocada pelo vírus da incerteza se tornou uma experiência para a história. Histórica para a vida de cada um. Muitos dos que estavam em uma das mesas distanciadas na plateia do Bourbon Street na noite de quinta, 15, poderão não se lembrar do primeiro show que viram na vida mas todos se lembrarão do primeiro show que viram depois da quarentena.
Antes de sair de casa, algumas perguntas são e devem ser feitas por quem resolveu se cuidar e levar a pandemia a sério. Afinal, é hora de voltar a uma casa de show? Mesmo que eu me cuide, as pessoas que estarão a meu redor terão a mesma consciência? Vale a pena sair de casa para não tocar no outro e não cumprimentá-lo?
A resposta mais honesta a cada uma delas talvez seja não, mas a reabertura traz um novo item no serviço para uma parcela da população à qual retomar alguma atividade cultural se tornou uma questão de sobrevivência: qual o nível de segurança essa casa pode me proporcionar?
A segurança. Não adianta mais ter uma boa cozinha, uma boa programação e garçons excelentes. Se o público não se sentir seguro, ele não voltará. Os empresários que quiserem retomar o faturamento que tinham antes da pandemia irão naufragar na ambição. Não é hora de ganhar, por mais necessário que o dinheiro seja para preencher o rombo dos últimos meses.
É hora de reconquistar as plateias, convencê-las de que seu estabelecimento tem condições de recebê-las e de que elas não se sentirão agoniadas ao se virem trancadas em um ambiente insalubre. E uma dica: existe nesse momento uma plateia enorme, que por enquanto não pode ser enorme ao mesmo tempo e no mesmo lugar, querendo uma casa de shows para chamar de sua.
O Bourbon Street foi reformulado para reabrir suas portas com um show de Nuno Mindelis. Apesar de ter um espetáculo novo na manga, Angola Blues, aceitou o convite de Radesca para fazer uma noite em homenagem a BB King. Por uma razão justa. Foi BB King o homem que inaugurou a casa há 27 anos antes de voltar a ela por outras dez vezes. Havia um componente emocional extra a quem queria ouvir uma boa banda de blues ao vivo: ela iria orbitar, com a ajuda do guitarrista Tuco Marcondes, o repertório de BB King.
A entrada. Se antes era um ponto de passagem, ela se tornou um lugar de convencimento. É na entrada que nos convencemos a seguir adiante em nossos riscos ou darmos meia volta. Depois de passarem por um medidor de temperatura e pela estação de álcool gel, os clientes aguardam até que os anteriores sejam encaminhados às mesas. Por isso, é preciso chegar pelo menos meia hora antes do show.
O teto alto ajuda na sensação de respiro e o novo distanciamento das mesas são os primeiros sinais de boas vindas. Se até ali os clientes devem usar as máscaras, agora eles podem tirá-las, e aí está um momento em que entra o bom senso que não está em nenhum protocolo.
A máscara é o objeto com o qual o público precisa aprender a lidar. Ela não é desconfortável apenas quando se usa, mas também quando se tira em locais nos quais deverão ser recolocadas para falar com um garçom, receber um amigo na mesa, ir ao banheiro. As casas precisam pensar em um porta máscaras para, assim como o álcool gel, deixar em cada mesa. Um porta máscaras, como um mini cabide, evitaria que as pessoas tocassem nos tecidos ao guardá-los nas bolsas ou tentassem pendurá-las nas cadeiras, como fez esse repórter, deixando-a cair no chão. Ou isso ou oferecer máscaras descartáveis ao público.
A noite ficou mais curta, e isso também muda uma conduta. Para aproveitá-la, não dá mais para o público chegar atrasado nem o show não começar na hora. O de Nuno Mindelis começou antes das 20h30, um bom horário para que o palco estivesse vazio, como manda a lei, às 22h. Mas todos sabem o que se passa no final de um show de blues, com o dono da casa desesperado contra uma banda e uma plateia que não pretendem sair nunca mais dali. E isso piorou com a pandemia. Um fiscal pode arruinar um estabelecimento.
Quando a plateia está seguramente sentada, Nuno aparece. Ele confessa estar pegando no tranco depois de sete meses parado e talvez não consiga dimensionar a importância que terá, ele e sua banda, nos quase 120 minutos que seguirão. Cada solo, cada refrão, tudo pega como se as sensações estivessem sendo descobertas ali, pela primeira vez.
Depois de sete meses à frente de lives frias e realmente distantes, estar a poucos metros do centro de um tornado criativo, com músicos se comunicando com os olhares e sorrindo uns aos outros, vale cada preço pago em cada pedágio de pandemia. Seu blues passa por cima dos medos e tem força para, pela primeira vez em sete meses, tirar as pessoas de um mundo contaminado por vírus visíveis e invisíveis e colocá-las em um lugar onde vale muito a pena estar vivo.
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