Espaço coordenado pelo jornalista paulistano Marcelo Moreira para trocas de idéias, de preferência estapafúrdias, e preferencialmente sobre música, esportes, política e economia, com muita pretensão e indignação.
terça-feira, fevereiro 04, 2014
O brasileiro não gosta de futebol, mas admira os 'organizados'
Os brasileiros deixaram de gostar de futebol a partir do momento em que começaram levar o esporte a sério demais e começaram a se "organizar" para ver um jogo, "defender" o seu time e de "defender" dos "inimigos". Hoje o torcedor brasileiro não gosta de futebol, no máximo gosta de seu clube. E deixou que o futebol/seu clube influencie o seu comportamento no dia a dia e no relacionamento com a sociedade. Essa é apenas parte da explicação do como é possível cidadãos comuns, a maioria moleques, ameaçarem de agressão e todo tipo de violência jogadores de futebol do Corinthians pelas redes sociais - aconteceu nos últimos anos com jogadores do Palmeiras, do São Paulo, do Flamengo, do Fluminense, do Atlético-MG...
Quando é necessário se "organizar" para torcer para um time ou ir a um estádio de futebol é porque o esporte é o menos importa neste caso. Acabou a diversão, acabou o lazer e acabou a segurança. Hoje os clubes se tornaram a razão da existência (e sobrevivência) de certas pessoas, ou certos grupos de pessoas, geralmente desequilibradas e carentes. E no vale-tudo das disputas em campo e nas discussões fora dele, o grito e o tapa passou a ser o comportamento "normal", transformando o futebol numa arena onde preconceitos, violência e desrespeitos de todo os tipos não só são tolerados como aceitos e incentivados. Não bastam mais xingamentos, zoeiras e cantorias contra os rivais/inimigos. Hoje é necessário solapá-los nas arquibancadas e nas ruas do entorno, como se a aniquilação do divergente fosse a única coisa que importasse, tornando o jogo e seu resultado secundário e desimportante.
A "organização" dos torcedores se tornou uma forma de sistematizar as frustrações e derrota do dia a dia, das dificuldades de melhorar a vida - sua e dos outros - e da incapacidade de muitos de lidar com a contrariedade e com a "oposição", seja ela qual for. Com o tempo, a "organização" ficou cada vez mais "organizada", com cara de fraternidade, de gueto, de máfia, de "grupo de elite".
Os "organizados" começaram a sentir mais "organizados" dos que os outros, mais "iguais" dos que os outros e começaram a ser invejados e admirados por quem não tolera o fracasso mas era incapaz de tomar atitudes. Na falta de objetivos, de inteligência e de educação, apostaram em um "elitismo" e em um "exclusivismo" baseados na intimidação e na força para garantir alguma "dose de sucesso" ao um grupo de personagens obtusos e solitários em busca de aceitação, qualquer aceitação. Os "organizados" acolheram os desgarrados oferecendo irmandade, solidariedade e apoio, mas exigindo obediência fanática e fascista, ao mesmo tempo em que a atividade "organizada" da torcida começava a ser lucrativa (para poucos) em termos financeiros, políticos e até sociais.
E não é que esse comportamento de grupo começou a despertar simpatia dos torcedores comuns, aqueles que se sentiam orgulhosos porque a "Mancha", a "Gaviões", a "Jovem" e da "Independente" foram lá "arrepiaram" os caras, defendendo as nossas cores, queimando faixas, espancando inimigos e ocupando espaços nas arquibancadas?
O apelo é forte para a molecada, que vê poder e invencibilidade nas "ações" das torcidas organizadas, que desde muito cedo começou a adotar táticas de guerrilha para enfrentar "inimigos" e até mesmo para organizar uma simples ida a uma partida no interior. E ao sentimento de poder junta-se ao de aventura, algo tão caro a uma juventude cada vez mais desassistida pelo Estado e que encontra cada vez menos estímulo nas escolas ou mesmo na família ou clubes de bairro. E aventura para essa molecada inconsequente é bater nos "caras", "colocar eles para correr" e "apedrejar os ônibus deles".
E tudo fica cada vez mais insuportável quando essa gente se torna alvo de gozações por conta dos "mercenários e bandidos" que não tiveram raça e que perderam feio para o maior rival. quando isso acontece, não basta mais aniquilar o inimigo de arquibancada, espancando-o e dizimando-o. É necessário punir os "covardes" e "incompetentes" que perderam em campo; é preciso castigar os responsáveis por "todos os males" da face da Terra, a origem de todas as chacotas e do martírio que é acordar no dia seguinte com o 5 a 1 na cabeça.
Como encarar o trabalho e a escola e o padeiro e o motorista de ônibus sem ter a mínima oportunidade de incinerá-los vivos somente por causa do sorriso irônico ou pelo simples fato de torcer pelo verde, pelo preto e branco ou pelo azul ou pelo tricolor? Se não dá para matar todo mundo pela frente, então que pelo menos possamos quebrar as pernas de patos e "sheiks" da vida, que pelo menos espanquemos zagueiros mais preocupados com bom senso do que em dividir a bola e quebrar o atacante adversário.
E quem imaginou que tais comportamentos geraria repulsa nos torcedores comuns se enganou. As redes sociais, com sua covardia intrínseca, se tornaram um palco apropriado para ameaças de todos os tipos contra jogadores e adversários, com estudantes, trabalhadores, profissionais liberais e gente comum apoiando a "pressão" exercida contra os futebolistas - e que exaltam os "organizados" nos dias seguintes aos confrontos violentos entre torcidas que resultam em mortes. É possível que essa gente, que é parte expressiva dos supostos apreciadores de futebol no Brasil, goste realmente do esporte? Brasileiro não gosta de futebol; no máximo, gosta do seu time, e olhe lá. Não precisamos, nunca precisamos e jamais precisaremos de torcidas organizadas. Ou elas se tornam coisas de "gente civilizada", ou que sejam tratadas como quadrilhas de crime organizado até que desapareçam.
Alguns fatos que jamais veremos novamente, infelizmente:
- 6 de março de 1958, o maior jogo de futebol de todos os tempos: Santos 7 x 6 Palmeiras, no Pacaembu, pelo torneio Rio-São Paulo. Primeiro tempo, Santos 5 x 2. aos 35 min do segundo tempo, Palmeiras 6 x 5 Santos, com virada santista nos últimos dez minutos. Sem divisão de torcedores, palmeirenses e santistas vibram e comentam com o adversário sentado ao lado como o futebol é legal. Palmeirenses aplaudem muito ao final do jogo os dois times, mas principalmente os jogadores santistas, pela forma com que atuaram. Nas ruas, parecia que os dois times tinham vencido. Um jovem de 17 anos chegou em casa, na Vila Mariana, sorrindo e feliz, para encontrar o pai emburrado. "Perdemos um jogo que estava ganho. Como você pode estar feliz?" "Pai, vá dormir e tenha certeza de que ninguém perdeu no Pacaembu. Gostaria que tivesse visto o que vi, e o senhor entenderia."
- Maracanã, finais dos mundiais de clubes de 1962 e 1963, com o Santos vencendo as duas: cariocas, mineiros e paulistas lotam o estádio do Rio para torcer pelo Peixe. Em São Paulo, onde houvesse um rádio transmitindo o jogo havia aglomeração, com torcedores de todos os times apoiando o Santos.
- 25 de abril de 1971, Corinthians 4 x 3 Palmeiras, Morumbi: Palmeiras abre 2 a 0 e sofre a virada. O Corinthians renasce após período péssimo. TUP e Gaviões já existiam, mas como grupo de torcedores. As gozações existiram, mas o que mais se ouviu ao final de jogo foram elogios ao espetáculo. Se havia dúvidas de que o Corinthians estava vivo, elas tinham acabado - para alívio dos palmeirenses que gostam de futebol.
- 12 de outubro de 1974, São Paulo 2 x 1 Independiente, primeiro jogo da final da Libertadores daquele ano: torcedores de Santos, Palmeiras, Corinthians e Portuguesa foram ao estádio, inclusive com bandeiras de seus times, para apoiar o tricolor, que acabaria perdendo o título.
Por outro lado...
- Meados de 1979: primeiros registros de confrontos mais sérios entre membros da Gaviões e a TUP nas imediações do Morumbi após clássicos. Era o auge da divisão das torcidas no anel superior do Morumbi, instituída em 1977 diante do aumento de brigas nas numeradas e nas arquibancadas durante os clássicos.
- Setembro de 1981: torcedores do Corinthians que iam ao Morumbi encontram três grupos de palmeirenses a caminho de Campinas no Vale do Anhangabaú. Na briga campal que ocorre, cinco ônibus da CMTC são apedrejados e quatro policiais militares, pelo menos, ficam feridos.
- Meados de 1983: a Mancha Verde surge como dissidência da TUP. Um dos motivos é a aparente letargia diante de supostas agressões cometidas repetidamente por membros da Gaviões e da Camisa 12. Um dos lemas era "vamos proteger os palmeirenses e escorraçar os 'cachorros'". Entre 1985 e 1990 a torcida se orgulhava de ser a mais temida e violenta do país. Logo a Independente, do São Paulo, seguiria pelo mesmo caminho e se orgulharia do "título" nos anos 90.
- Estádios pós-1985: brigas são frequentes e esperadas em grandes clássicos, na capital e até mesmo no interior, onde os ônibus das torcidas se cruzavam indo/voltando. Ir a um clássico se tornou arriscado, e a regra básica era jamais vestir a camisa do seu time, sob risco de apanhar dentro e fora do estádio. As mortes passam ser frequentes nas imediações e nas periferias. Na era da internet, as batalhas são combinadas e marcadas por meio de redes sociais. Efetivos policiais aumentam cada vez mais e as rivalidades ultrapassam as fronteiras estaduais; palmeirenses querem matar flamenguistas, vascaínos querem assassinar corintianos, que são odiados por gremistas, que querem pegar palmeirenses, que têm rixa mortal com cruzeirenses e torcedores do Sport, enquanto pontepretanos querem massacrar torcedores do Guarani e do Paulista, que também se odeiam...
Não creio que o brasileiro goste de futebol...
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