Espaço coordenado pelo jornalista paulistano Marcelo Moreira para trocas de idéias, de preferência estapafúrdias, e preferencialmente sobre música, esportes, política e economia, com muita pretensão e indignação.
quarta-feira, dezembro 28, 2011
Tocar CD e operar toca-discos não transforma ninguém em artista ou torna alguém músico
Um interessante personagem da vida musical brasileira atual é o músico e produtor cultural Clemente Nascimento, líder da banda Os Inocentes e profissional de múltiplas atividades: toca na sua banda e na atual formação da Plebe Rude, apresenta um programa de TV na internet e arruma tempo para “discotecar” (acho a palavra mais adequada) em algumas casas noturnas – coisa que ele acha bastante divertida.
Essa sua última atividade pode eventualmente lhe rende alguma remuneração, mas é essencialmente uma curtição para quem gosta e vive de música. Mas ele não tem ilusão: é um DJ (disc-jóquei) ocasional. Essencialmente é um músico, mas nas casas noturnas ele não “toca”, ele “discoteca”. São coisas bastante distintas, mas tem gente que insiste em misturar as coisas.
Lembrei de Clemente quando recebi um convite fazer uma atividade semelhante em uma festa em um bar moderninho de São Paulo neste mês de dezembro. Era um convite que necessitava de confirmação posterior, como é comum neste casos. Prevendo o tipo de mico que isso poderia se tornar, não resisti à provocação.
“Você vai ‘tocar’ e fazer a seleção de uma série de músicas legais dos anos 60, essencialmente rock inglês, algumas coisas óbvias e a maioria nem tanto”, disse a simpática amiga de um amigo que agitava a festa. Em seguida ela diz: “Acho que você não vai estranhar ao operar as pick-ups (toca-discos) e toca-CDs múltiplos, vai fazer uma performance legal.”
“Na boa, dá menos trabalho se eu fizer a seleção na minha casa, gravar em um CD ou mídia de DVD para deixar rolar. Ou quem sabe até mesmo um pen drive. Aí todo mundo se diverte. Afinal, DJ não passa de um tocador de disco e de CDs”, emendei sem que ela tivesse tempo de pensar.
É claro que o convite não foi confirmado – e se tivesse sido, teria sido retirado, de tão feia que foi a cara de decepção e até de nojo quando expus o que achava da atividade de DJ. Respeito quem faz isso, quem gosta de discotecar e até quem ganha dinheiro com isso. Entretanto, DJ pode ser qualquer coisa, menos músico. Faz qualquer coisa, menos tocar.
Aparentemente não há muito o que discutir sobre isso, mas há gente que insiste em brigar com os fatos, em espancar e torcer a realidade. Não bastasse essa ridícula confusão de conceitos, a coisa ainda piora: esse mesmo pessoal que acha que DJ “toca” acredita que música eletrônica é música. Não é. É apenas barulho, e dos mais irritantes.
Esse tipo de tosqueira voltou a se proliferar neste século. A quantidade de bares e casas noturnas aumentou muito em cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, por exemplo. O mercado ficou bom para os tocadores de CDs (ou MP3, ou vinis, ou qualquer outra coisa).
O lado ruim é que a música eletrônica disseminada pelos tocadores de qualquer coisa voltou com tudo, até porque a tecnologia facilitou demais a produção dos barulhinhos computadorizados. E quem faz essa coisa acha que é artista de verdade.
Os recursos eletrônicos sempre foram levados em consideração a partir do momento em que se inventou o abominável sintetizador, no finalzinho dos anos 60, trambolho barulhento que encantou gente decente como George Harrison (Beatles) e Pete Townshend (The Who).
Quando usado de forma inteligente e criativa, sem abuso, o sintetizador até que foi útil, como nas trilhas sonoras compostas por Harrison e nas obras-primas “Who’s Next” e “Quadrophenia”, do Who. Infelizmente, por outro lado, foi responsável por algumas das maiores porcarias já feitas dentro do rock.
Boa parte dos músicos consagrados e mesmo os de apoio costumam ser diplomáticos ao falar do uso de elementos eletrônicos em seus trabalhos, mas simplesmente ignoram o que conhecemos por música eletrônica, aquele barulho artificial e insuportável das pistas de dança.
Alguns aceitam que produtores criem arranjos com base em barulhos de computador, outros até brincam com os mesmos barulhinhos que os DJs e os incluem de forma discreta em seus trabalhos. Mas são poucos os artistas sérios que realmente fazem uso desses recursos de forma explícita e escancarada.
Dois gigantes do rock cometeram trabalhos péssimos nos últimos 20 anos, seduzidos pela suposta “modernidade”. Eric Clapton escorregou feio com “Pilgrim”, de 1998, CD no qual suas guitarras foram soterradas por arranjos eletrônicos e barulhos artificiais.
Jeff Beck, outro gênio da guitarra, caiu na armadilha e gravou os insuportáveis “Jeff”, de 2001, e “You Had It Coming”, de 2003, sendo que já flertava com o estilo em 1999 no álbum “Who Else!” Beck gostou do resultado de sua ousadia, mas muitos fãs não. O jeito foi voltar ao rock, ao blues e ao jazz para gravar “Emotion & Commotion”, seu último trabalho.
É possível ficar dias e dias colhendo exemplos para torpedear o barulho eletrônico. Quem gosta deste tipo de música se contenta com muito pouco. Isso não é música, e DJ não é músico, é um tocador de CD. No máximo, animador de festa. DJs que acham que são artistas não merecem respeito. São o que são, o que já é demais.
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