quinta-feira, fevereiro 26, 2009

'Ditabranda' para quem?


Só contextualizando: a Folha de S. Paulo publicou recentemente um editorial sobre as sucessivas e bem-sucedidas tentativas de Hugo Chávez, presidente da Venezuela, de usar a democracia para destruí-la, ao propor plebiscitos para se perpetuar no poder, por meio de reeleições sucessivas e aprovasr medidas autoritárias que minam cada vez mais a autonomia e a liberdade no país.

No meio do texto, o infeliz editorialista errou feito, ao tentar relativizar a ditadura militar brasileira - que matou pouco - em comparação com as ditaduras militares argentina, chilena, uruguaia e tantas outras. Usou o termo "ditabranda", provocando a ira e a fúria de diversos setores da sociedade, notadamente de gente que foi vítima ou teve parentes vitimados pelo odioso regime militar brasileiro. O texto abaixo é mais uma reação ao equívoco que foi o editorial, mas é bastante expressivo porque veio de dentro da própria Folha.



Ditadura, por favor, por Fernando de Barros e Silva

Fernando de Barros e Silva (*)



Fonte:Folha de S. Paulo


Certamente não é a primeira vez que um colunista da casa diverge de uma posição expressa pelo jornal em editorial.

Mas é a primeira vez que este colunista se sente compelido a tornar pública sua discordância, inclusive em nome do que aprendeu durante 20 anos nesta Folha.

O mundo mudou um bocado, mas "ditabranda" é demais.

O argumento de que, comparada a outras instaladas na América Latina, a ditadura brasileira apresentou "níveis baixos de violência política e institucional" parece servir, hoje, para atenuar a percepção dos danos daquele regime de exceção, e não para compreendê-lo melhor.

O que pretende ser um avanço analítico parece, mais do que um erro, um sintoma de regressão.

Algumas matam mais, outras menos, mas toda ditadura é igualmente repugnante. Devemos agora contar cadáveres para medir níveis de afabilidade ou criar algum ranking entre regimes bárbaros?

Por essa lógica, chega-se à conclusão absurda de que o holocausto nazista não passou de um "genolight" perto do extermínio de 20 milhões promovido por Stálin.

Ora, se é verdade que o aparelho repressivo brasileiro produziu menos vítimas do que o chileno ou o argentino, isso se deu porque a esquerda armada daqui era menos organizada e foi mais facilmente dizimada, não porque nossos militares tenham sido "brandos".

Quando a tortura se transforma em política de Estado, como de fato ocorreu após o AI-5, o que se tem é a "ditadura escancarada", para falar como Elio Gaspari. Seria um equívoco de mau gosto associar qualquer tipo de "brandura" até mesmo ao que Gaspari chamou de "ditadura envergonhada", quando o regime, entre 64 e 68, ainda convivia com clarões de liberdade, circunscritos à cultura.

Brandos ou duros, o fato é que os regimes autoritários só mobilizam a indignação de grande parte da esquerda quando não vêm acompanhados da retórica igualitarista.

Muitos intelectuais se assanham agora com a tirania por etapas que Chávez vai impondo à Venezuela sob a gosma ideológica da revolução bolivariana. Isso para não lembrar o fascínio que o regime moribundo mas terrível de Fidel Castro ainda exerce sobre figurões e figurinhas da esquerda nativa.

É bem sintomático, aliás, que, ao protestar contra a "ditabranda" em carta à Folha, o professor Fábio Konder Comparato, guardião do "devido respeito à pessoa humana", tenha condenado os autores do neologismo a ficar "de joelhos em praça pública" para "pedir perdão ao povo brasileiro".

Que coisa. Era assim, obrigando suas vítimas a ajoelhar em praça pública, submetendo-as à autêntica "tortura chinesa", que a polícia política maoísta punia desvios ideológicos durante a Revolução Cultural. Quem sabe, como a "ditabranda", seja só um palpite infeliz.

(*) Editor de Brasil da Folha de S. Paulo. Escreveu no espaço do colunista Marcos Nobre, que está em férias. - Artigo publicado na edição de 24/02/09

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