Mais uma lei que precisa ‘pegar’
O grau de civilização de um povo é medido, entre outras coisas, pela adesão e respeito às leis, qualquer lei. É quase inacreditável que ainda tenhamos de ouvir com muita frequência que no Brasil existem leis que pegam e outras que não pegam. Imagine então o que dizer de um estrangeiro quando ouve tal coisa.
Esse abuso de incentivar leis a “não pegarem” tem uma parcela imensa de responsabilidade das empresas, e falo de grandes multinacionais.
Um dos exemplos recentes é a norma técnica, com força de lei, que o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) do Ministério da Justiça editou em junho a respeito dos telefones celulares.
O órgão do Ministério da Justiça considera agora o telefone celular um item essencial da vida moderna, tanto para o trabalho como para o cotidiano de estudantes e donas de casa.
Portanto, a partir de agora quem tiver celular com defeito ainda dentro da garantia pode procurar uma loja do fabricante e exigir a troca imediata do aparelho ou o dinheiro de volta, desde que apresente a nota fiscal.
Por que isso? Porque fabricantes, lojas e assistências técnicas descumpriam sistematicamente o Código de Defesa do Consumidor (CDC), ignorando a lei e enrolando o cliente na hora de consertar o aparelho.
O jogo de empurra criminoso, em alguns casos, fez com que consumidores esperassem seis meses por telefones no conserto.
Evidentemente que os fabricantes chiaram, e muito. A Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), que representa essas empresas, diz claramente que a norma técnica do governo é apenas uma “recomendação”, e não lei. Mentira absurda e abjeta.
Nesta quinta-feira, por exemplo, o DPDC recusou proposta de “flexibilização” da norma que manda trocar imediatamente celulares com defeito, desde que estejam na garantia.
A proposta, que não foi detalhada pelo órgão, é de autoria das empresas Nokia, Motorola, a – acompanhada de LG, Samsung e Sony Ericsson –, que estiveram reunidas com o DPDC.
As sugestões das empresas, de forma correta, foram descartadas porque contrariavam o Código de Defesa do Consumidor (CDC). Nem a Abinee e nem os representantes dos fabricantes informaram o teor da proposta feita ao Ministério da Justiça. A nota do DPDC indica que a proposta não atendia a obrigatoriedade de que a troca fosse imediata.
“Embora o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor esteja sempre aberto ao diálogo e ao recebimento de novas iniciativas dos fabricantes que sinalizem o respeito à regra prevista no CDC, entende que os consumidores devem ser respeitados e as trocas devem ocorrer imediatamente”, diz uma nota do DPDC sobre a recusa da proposta.
A Nota Técnica 62/CGSC/DPDC/2010 do Ministério da Justiça, publicada no dia 23 de junho, classificou o celular como “bem essencial” e determinou a obrigatoriedade da troca imediata dos aparelhos defeituosos.
A mudança foi motivada pelo fato de o celular ser o produto que mais registra reclamações nos Procons (24,87% do total de 100 mil reclamações em 21 Procons estaduais e 18 municipais).
Segundo o DPDC, as lojas fogem da responsabilidade e as fabricantes encaminham os casos para as assistências técnicas, que retêm os aparelhos para investigar eventual culpa dos consumidores.
Ou seja, as empresas multinacionais que fabricam e vendem celulares no Brasil insistem em afirmar que o governo apenas “recomendou” a troca imediata. Uma dessas empresas chegou até a recomendar em seu site que suas lojas próprias não seguissem a orientação do DPDC. A repercussão foi péssima, e o texto foi retirado.
Entretanto, nas lojas, repórteres do Jornal da Tarde, se passando por clientes, ouviram claramente de funcionários: “Recebemos orientação para não cumprir tal determinação”.
Em algumas situações, os funcionários simplesmente diziam que tal lei não existia. Numa delas, encontraram um consumidor irado e chato, que chamou a polícia, esfregou na cara do gerente a determinação no Diário Oficial da União e acionou o fabricante no Juizado Especial Cível pedindo indenização por danos morais.
Essa lei vai pegar? Infelizmente, vai depender de nós.
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