terça-feira, junho 17, 2008

Folha e Veja, os alvos errados da promotora eleitoral

Carlos Chaparro
Publicado originalmente no site Comunique-se


O XIS DA QUESTÃO – À luz da Constituição, pode-se dizer que, no mínimo, a promotora Maria Amélia Nardy Pereira errou de alvo. Talvez fosse mais viável enfiar a carapuça do desrespeito à lei eleitoral nas cabeças de Marta Suplicy e Gilberto Kassab – que esta semana, com a entrevista que dá capa à Vejinha-SP, aumenta as dores de cabeça da promotora. Mas a questão vai além dessa rusga furada entre a promotoria da Justiça Eleitoral e os dois gigantes da mídia jornalística.

1. A letra viva e clara da Constituição

Em primeiro lugar, declaro sem meias palavras que considero um absurdo as representações contra a Folha de S. Paulo e a Veja, apresentadas pela Promotoria da Justiça Eleitoral, por terem aqueles veículos realizado e publicado entrevistas com Marta Suplicy – ações jornalísticas que a promotora Maria Amélia Nardy Pereira considerou “propaganda eleitoral” fora do prazo legal.

Navegando em equívocos, a promotora meteu-se numa difícil briga institucional com a imprensa, e da briga a Folha vem tirando bom proveito. Mas aos jornalistas e aos públicos leitores interessa que o debate da questão vá além das emoções do embate. De modo particular, entendo que devemos aproveitar a ocasião para propor uma reflexão mais aprofundada sobre o fantasma chamado “propaganda”, que nutre tanto a argumentação da promotora quanto o arrazoado apresentado pela Folha, no editorial de defesa publicado sexta-feira passada.

No que se refere propriamente à representação encaminhada pela promotora, até pela inconsistência da argumentação que a sustenta, arrisco a predição de que terá vida curta, sem outros efeitos além daqueles já produzidos, na discussão pública gerada. E diga-se que no já discutido pela mídia, o filme da promotora sai bastante borrado. Por boas razões, diga-se, já que ela simplesmente desconsidera a clareza e a importância ética do preceito constitucional segundo o qual “a manifestação do pensamento, a criação, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição”.

Essa é a redação clara e vigorosa do Artigo 220 da Carta Magna. Artigo complementado por dois parágrafos igualmente de clareza e vigor inquestionáveis.

Diz o parágrafo 1º: “Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no Artigo 5º, IV, V, X, XIII e XV” – restrições que dizem respeito à proteção devida aos direitos fundamentais do cidadão.

Para que não subsistam quaisquer dúvidas, o parágrafo 2º do mesmo Artigo 220 é ainda mais peremptório: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica ou artística”.

À luz da Constituição, portanto, me parece que, no mínimo, a promotora Maria Amélia Nardy Pereira errou de alvo. Talvez fosse mais viável enfiar a carapuça do desrespeito à lei eleitoral nas cabeças de Marta Suplicy e Gilberto Kassab – que esta semana, com a entrevista que dá capa à Vejinha-SP, faz o jogo de confronto eleitoral com Marta Suplicy e aumenta as dores de cabeça da promotora.

Mas a questão conceitual da propaganda versus jornalismo precisa ser discutida.

2. Interações entre Jornalismo e Propaganda

Leio aqui no Comunique-se que a promotora Maria Amélia, provocada pela repórter Carla Soares Martin, toca no ponto que a ela parece essencial: o problema não é a entrevista, e sim a apresentação de plataformas políticas dos candidatos, veiculadas pelos meios de comunicação. E coloca, de forma mais explícita, o seu polêmico ponto de vista: “A entrevista é considerada uma propaganda na medida em que o candidato expõe sua plataforma política. Não há nada contra a liberdade de imprensa”.

Faltou-lhe dizer o que entende por liberdade de imprensa e por direito à liberdade de informação jornalística. Mas isso é o de menos, já que se trata de questão resolvida pela Constituição.

Verdadeiramente lamentável é que a promotora não nos tenha dito qual é, onde está e como pode ser usado o critério para definir fronteiras discursivas entre jornalismo e propaganda - se é que essas fronteiras existem, em especial quando se trata de entrevistar protagonistas e discutir temas de interesse público, em conflitos eleitorais.

À promotora, estudiosa das leis, talvez não interessem as subjetividades da linguagem jornalística e dos usos que dela a sociedade faz. Mas o pessoal da Folha, que é do ramo jornalístico, ao argumentar contra a promotora, cai na mesma esparrela de pressupor que jornalismo e propaganda são coisas separadas e separáveis por fronteiras objetivas. No editorial em que faz o seu arrazoado público de defesas, escreve a Folha:

“O primeiro e mais fundamental equívoco da promotora é não distinguir entre os termos ‘propaganda’, a mensagem em geral paga que tem o intuito de convencer, persuadir, e ‘material jornalístico’, que objetiva informar o leitor”.

Pois eu gostaria muito que os editorialistas da Folha nos dissessem como é possível eliminar do discurso particular de qualquer entrevistado a intenção de persuadir e convencer.

3. O direito de dizer

Ora, ao jornalismo interessam os conflitos relevantes da atualidade. Em períodos eleitorais e pré-eleitorais, os conflitos e os protagonistas prioritários são os que envolvem interesses antagônicos, em disputa de espaços de poder. Cabe ao jornalismo expor, fazer aflorar os conflitos, as divergências, os antagonismos – com honestidade, para que os públicos não sejam enganados por falsas intenções.

O jornalismo não pode, portanto, assumir o propósito de fazer propaganda. Mas também não pode evitá-la. Nem deve temê-la. Porque a propaganda é efeito inevitável de qualquer bom discurso particular socializado pelo jornalismo, quer a ação discursiva venha em forma de entrevista ou de acontecimento noticiável.

É bom lembrar aos colegas editorialistas da Folha que na política, como na ciência, na cultura ou no mundo dos negócios, o discurso particular é sempre e inevitavelmente propagandístico, e isso não pode ser rejeitado.

Em resumo: não há jornalismo sem discursos particulares conflitantes; e não há discurso particular sem propaganda.

Claro que aí está o cerne das contradições e dificuldades éticas do jornalismo. Faz bom jornalismo quem sabe lidar com as contradições do ofício sem fraudar o dever intelectual de informar e elucidar com honestidade.

E sem garrotear o direito democrático de dizer.

(*) Manuel Carlos Chaparro é doutor em Ciências da Comunicação e professor livre-docente (aposentado) do Departamento de Jornalismo e Editoração, na Escola de Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo, onde continua a orientar teses. É também jornalista, desde 1957. Com trabalhos individuais de reportagem, foi quatro vezes distinguido no Prêmio Esso de Jornalismo. No percurso acadêmico, dedicou-se ao estudo do discurso jornalístico, em projetos de pesquisa sobre gêneros jornalísticos, teoria do acontecimento e ação das fontes. Tem quatro livros publicados, sobre jornalismo. E um livro-reportagem, lançado em 2006 pela Hucitec. Foi presidente da Intercom, entre 1989-1991. É conselheiro da ABI em São Paulo e membro do Conselho de Ética da Abracom.

Nenhum comentário:

Postar um comentário