A retomada do mundo artístico está sendo celebrada com muito entusiasmo, como era de se esperar. Shows de rock, pequenos ainda, espocam aqui e ali nas capitais brasileiras e cidades de porte médio e os recentes desfiles de carnaval em São Paulo e Rio de Janeiro ajudaram a dar uma sensação de retorno à normalidade, ainda que não muito convincente.
No bem-vindo retorno às atividades, como também era esperado, foi necessário começar do zero em quase todas as áreas ligadas à cultura e entretenimento. Muitos empreendimentos quebraram e o dinheiro disponível para investir - e gastar - ainda é bastante escasso.
Claro que a competição pelos nacos não poderia ser nada menos do que encarniçada. As filas de projetos abarrotam os Sescs da vida, oásis de investimento ainda em tempo de pandemia.
Nas brechas que surgem para que o trabalho autoral e inovador, o mundo continua dividido entre a preguiça e o comodismo. E dá-lhe predomínio do chamado "classic rock", no caso da música, especificamente.
O Lollapalooza e o Rock in Rio continuam exceções ao oferecerem oportunidades a artistas menos aclamados, mas os principais continuam sempre os mesmos. E dá-lhe classic rock e Iron Maiden e Guns N' Roses... e Sepultura...
E então eis que mesmo os eventos menores ainda apostam nos "covers" como tábua de salvação para um público cada vez menos interessado em conhecer música diferente e artistas instigantes. Louvemos a existência dos festivais underground de metal em São Paulo e no Sul do país, mas estes continuam como sempre foram, e cada vez mais underground.
Na Grande São Paulo e região de Campinas, volta com força os chamados eventos gourmet de gastronomia, especialmente aqueles ligados a reuniões de cervejarias artesanais, um mercado em alta antes da pandemia.
Quase a totalidade deles é ligada ao rock e atendem a um público específico, mas que cresce a cada edição. Terreno fértil para o rock florescer e apresentar novidades, certo?
Claro que não. O predomínio de bandas "covers", com versões múltiplas de clássicos do rock, é total, a ponto de um desses eventos de cerveja, em São Bernardo do Campo, escalar dois cantores importantes do cenário pesado para tocar e cantar... músicas do Queen.
Foi o que fizeram Jeff Scott Soto (ex-Journey, Talisman, Yngwie Malmsteen e atual Sons of Apollo) e Eric Martin (Mr. Big). Com carreiras longevas e com enorme conteúdo, se limitaram a fazer um "tributo" ao Queen amparados pelos músicos da banda brasileira Spektra. Martin até cantou dois hits do Mr. Big dos anos 90, e só.
Pode ser só uma impressão, mas o classic rock está voltando com tudo, ao menos em São Paulo, em uma proporção que coloca as bandas autorais na defensiva.
Em uma rápida olhada na programação de seis bares novos de São Bernardo, Santo André e São Caetano, que abriram no período em que a pandemia começou a arrefecer, a proporção de bandas contratadas na semana para shows era de quatro covers para uma autoral. Parece uma coisa insolúvel e que se espalha com rapidez no Brasil.
A questão nunca foi de estimular uma contraposição covers x autorais, mas de entender a lógica do mercado e clamar por uma situação mais equilibrada.
Para a maioria das banda de rock do Brasil, a chance de mostrar material próprio quase que se restringe a festivais de todos os portes ao longo do país. E não há festival para todo mundo.
O predomínio das bandas covers na atualidade é bem perceptível, e o argumento de que o classic rock é que atrai público para bares, restaurantes, eventos gastronômicos e microfestivais diversos domina cada vez mas as conversas e os argumentos. Como combatê-los?
'O classic rock vai matar o rock'
A cena surpreendeu quem estava no estúdio e os ouvintes de uma das mais populares emissoras de rádio da África do Sul.
O Deep Purple estava inteiro nos estúdios amplos na Cidade do Cabo, onde deveria se apresentar naquela noite, no segundo semestre de 2005, na turnê do razoável álbum "Rapture of the Deep".
Entrevista morna, apresentador e jornalistas pouco informados e pouco estimulados, e eis que uma pergunta sobre o posicionamento da banda no mercado desperta a fúria de Ian Gillan, o vocalista.
Sem se dirigir especificamente a alguém, disparou sem ser interrompido: "Depois que inventaram essa história de classic rock, fomos exilados a um nicho de mercado que nos condena a tocar as mesmas músicas para as mesmas pessoas de sempre. O classic rock nos limita a uma faixa de mercado que impede que consigamos divulgar nossa música em toda a sua plenitude."
O cantor continuou dsisparando: "É maravilhoso que sejamos reconhecidos pelo que criamos em 'Smoke on the Water' ou 'Highway Star', mas, caso alguém se importe em saber, fizemos muito mais coisas depois disso, boas ou ruins, mas fizemos. Agora mesmo estamos divulgando novo álbum, mas as pessoas só querem saber do que gravamos 35 anos atrás, das histórias que gravamos 35 anos atrás, das histórias que vivemos na Suíça em 1971 ou no Japão em 1972, ou até mesmo por que Ritchie (Blackmore) não está mais na banda. Santo deus, isso ocorreu há 12 anos [em relação á época] e ainda nos perguntam isso, como agora nesta entrevista."
Sem titubear, encerrou o tópico. "O rótulo classic rock é pernicioso e pode no futuro prejudicar o próprio gênero musical, amarrar o rock em uma camisa de força em que o novo será diluído de tal forma que sucumbirá às músicas de sempre, que por sua vez se consumirão de tal forma de que nada restará."
As proféticas palavras de Gillan se materializaram nove anos depois, em uma realidade de mercado que está privilegiando o certo em relação ao duvidoso, onde o risco foi escanteado e as novidades ficam cada vez mais relegadas a espaços alternativos. P
Para músicos e profissionais envolvidos com música, especialmente no Brasil, o predomínio ilusório dentro do rock do rótulo "classic" e consequência direta do novo modo de se relacionar com a música – e que necessariamente não é uma coisa boa infelizmente.
Essa situação perdurou em muitos lugares do mundo a partir daquela entrevista sincera e forte de Ian Gillan e se agravou no Brasil ao longo dos anos, como este Combate Rock relatou há alguns anos e vem observando desde então.
O mercado musical como um todo, em todo o mundo, está menor (pelo menos essa é a sesação que temos) e mais pulverizado. Ao mesmo tempo, a música perdeu um pouco de sua importância na vida das pessoas.
Hoje percebemos que há menos disposição das pessoas em procurar pelo novo, em curtir e saborear a produção, seja de um grande artista ou de um iniciante.
O avanço da tecnologia, tão esperado e ansiado por todos, tem o seu lado ruim: diluiu a música e arte em geral, tornando-as supérfluas. Por conta disso, o ouvinte/fã de música atual se contenta com pouco e não valoriza mais o que ouve e quem toca.
E, curiosamente, no Brasil esse fenômeno atingiu em cheio o rock. Tente lembrar qual foi o último grande hit do rock nacional.
Quem vai a um show do U2, dos Rolling Stones ou do Black Sabbath (quando ainda existia) não tem o menor interesse em ouvir as músicas novas do último álbum. Ouvintes preguiçosos e acomodados só querem ouvir "Sunday Bloody Sunday", "Satisfaction" e "War Pigs".
A coisa piora quando observamos o que ocorre nos palcos dos botecos europeus, brasileiros e norte-americanos: só músicos tocando covers, de preferência versões de sucessos antigos, gravados no mínimo há mais de 20 anos. Hits mais recentes? No máximo alguma coisa de Coldplay e Radiohead, e dos primeiros álbuns.
Pouca oferta de coisa nova
O desespero é geral nas grandes cidades brasileiras. Nos poucos locais onde ainda se pode ouvir rock, quase não se via trabalho autoral antes da pandemia e o panorama não mudou muito na atualidade.
Cinco dias por semana são dedicados aos "clássicos" do rock e do pop rock nos bares que ainda apostam no rock, geralmente executados por instrumentistas desmotivados para um público que normalmente os ignora, exceto quando algum megahit do passado é executado.
Há alguns casos raros de bandas dedicadas a somente um artista e que tem um público cativo que costuma seguir a todos os bares de uma região a cada final de semana, mas não são muitas as bandas com tamanho de seguidores suficientes para garantir o que quer que seja.
Os festivais de rock ainda resistem em algumas cidades, mas com um público bastante específico, em geral na área do heavy metal.
Os grandes eventos, do porte de um Planeta Rock ou Abril Pro Rock, ainda dependem de um "nomão" das antigas" parta garantir público – ou, ao menos, algum público.
É mais do que óbvio que o classic rock precisa ter o seu espaço, só que, quando ele predomina, e de forma ostensiva, como no Brasil atualmente, todos perdem, justamente em um momento em que o rock, como um todo, é atropelado pelo funk de inspiração carioca e para gêneros de qualidade no mínimo questionável, como o pagode e o sertanejo.
Toninho Pires é fotógrafo publicitário. Costuma dizer que sua profissão é a música, ainda que seus palcos sejam bares e restaurantes pouco glamurosos da Grande São Paulo.
Em dupla com parceiro Ricardinho (teclados, percussão e voz), o violonista e guitarrista ensaia uma tímida carreira autoral, apostando em um pop rock simples com viés de MPB. Vende um CD demo nas apresentações por R$ 5, gravado de forma apressada e sem requintes de produção. O problema é na hora de exibir as canções próprias.
"Não me lembro da última vez em que toquei uma música minha. Tenho de respirar muito fundo para suportar tocar as mesmas músicas de sempre da Legião Urbana, do Paralamas do Sucesso, do Ultraje a Rigor, Raul Seixas… Nada contra esses artistas, o problema é que só isso. Público e proprietários só querem isso. Já teve bar que me proibiu de tocar músicas próprias.Em outro, tive que mostrar com antecedência as músicas, e não acreditei que algumas foram vetadas pelo dono do local porque ele achava que não eram conhecidas", diz Pires resignado.
O classic está matando o rock? Quem diria que um dia estaríamos discutindo tamanha heresia. Se não não está matando, certamente está contribuindo para a sua asfixia.
Existe algo que se possa fazer no médio prazo para abrir espaço aos novos artistas, sem que seja necessário satanizar os clássicos e veteranos?
"Tocar, tocar e tocar cada vez mais, e cada vez melhor, para três pessoas ou para mil pessoas. Fazer com que o próximo show seja melhor do que o anterior. É só isso o que resta para para artistas independentes. Trabalho de qualidade e persistência são fundamentais para que a música seja reconhecida. Reclamar não só não ajuda como piora as coisas", declarou ao Combate Rock anos atrás Beto Bruno, ex-cantor da bem-sucedida banda independente Cachorro Grande, do Rio Grande do Sul. É o que está fazendo em carreira solo, mas sabe que terá de ralar muito para furar a bolha do predomínio do classic rock.